VARIEDADES

Um manual para tempos obscuros: o que fazer quando a civilização entra em colapso

Muitos brasileiros têm a sensação de que a República — ou mesmo a civilização — está desmoronando.

Um ex-presidiário comanda o país. A Suprema Corte está fora de controle. A violência e a impunidade se retroalimentam. Algumas normas básicas de convívio desapareceram. As músicas mais tocadas têm letras que, poucos anos atrás, seriam consideradas inapropriadas até em estabelecimentos de má reputação. Tudo indica haver um declínio de três pilares de uma sociedade estável: a religião, o patriotismo e a família.

Além das fronteiras do Brasil, a ameaça de uma Terceira Guerra Mundial nunca foi tão palpável. Incapazes até mesmo de conter a imigração em massa, a Europa e os Estados Unidos já não são um refúgio seguro como no passado.

Embora cientistas tenham identificado um viés saudosista nos seres humanos (toda geração acredita que as anteriores eram melhores) há sinais de que os pessimistas podem estar certos desta vez.

Se serve de consolo, não será a primeira vez que algo assim acontece. E algumas das mentes mais influentes da história se destacaram justamente por trazerem alguma luz em meio ao crepúsculo. Embora discordem quanto à postura adequada diante do caos crescente, elas concordam em uma coisa: não é preciso se desesperar.

Santo Agostinho: a Cidade dos Homens não é tudo

O Império Romano não se desfez de um dia para o outro. O processo de esfacelamento levou décadas (pelo menos na parte ocidental do império, já que a metade oriental sobreviveu em Constantinopla).

Um dos marcos desse processo foi o saque de Roma pelos Visigodos, um dos muitos povos bárbaros que dilapidaram o território até então impenetrável sob controle romano. O ataque, por volta do ano 400 D.C., impressionou o jovem Agostinho de Hipona (futuro Santo Agostinho), que preparou um tratado em que tenta explicar aqueles tempos turbulentos por uma perspectiva teológica cristã.

O resultado foi “A Cidade de Deus”, um dos livros mais influentes da era cristã. Uma das perguntas que Agostinho responde em seu livro diz respeito ao sofrimento de pessoas boas. Por que Deus permite que eles sejam afetados pelas ações dos maus? Agostinho responde: porque os bons, embora possam ter um caráter melhor do que os iníquos, não fizeram o suficiente para impedir que os maus agissem.

“Juntos [dos maus] são castigados, não porque juntos levem má vida, mas porque juntos amam a vida temporal; não igualmente, mas juntamente. Os bons deviam desprezá-la para que os outros, repreendidos e corrigidos, alcançassem a vida eterna”, escreve ele.

“Não deve considerar-se má a morte que uma vida virtuosa precede”.

Santo Agostinho

Além disso, Agostinho diz, aqueles que choram porque perderam as riquezas terrenas na devastação de Roma choram por um motivo mesquinho: as riquezas reais são as do espírito. “Houve de fato homens de bem, mesmo cristãos, que foram torturados para que entregassem seus bens ao inimigo. Porém nunca puderam entregar nem perder os bens pelos quais se tornaram bons. E se alguns preferiram ser torturados a entregarem as suas riquezas iníquas, nesse caso já não eram bons”, ele afirma.

Mesmo em uma situação de vida ou morte, não deve haver desespero, diz Agostinho. Cedo ou tarde, a morte chegará para todos. “Não deve considerar-se má a morte que uma vida virtuosa precede. (…). Àqueles que necessariamente hão de morrer não deve preocupar muito o que acontecerá para que morram, mas antes para onde terão de ir irremediavelmente depois da morte.”

A mensagem de Santo Agostinho é obviamente carregada de um conteúdo espiritual, mas também pode inspirar até mesmo os céticos ao propor que a Cidade dos Homens não é a única razão da existência: o tesouro mais valioso é aquele que não pode ser saqueado.

São Bento: Retirar-se para reconstruir

Cerca de um século depois de Agostinho, quando a destruição do Império Romano já se mostrara inevitável, outro religioso cristão concluiu que o melhor caminho era se retirar para um local isolado e, lá, se dedicar a uma vida simples de trabalhos manuais, estudos e oração.

Nascido na cidade italiana de Núrsia, São Bento viveu em Roma e presenciou de perto a decadência moral daquela que outrora fora a cidade mais importante da Europa. Apesar da sua violência, o Império Romano impunha uma certa ordem à vida em sociedade. Esta ordem já havia ruído.

São Bento decidiu, então, se retirar para o campo em busca de uma vida isolada. A Abadia e o mosteiro de Montecassino, construídos por iniciativa dele, foram (literalmente) erguidos sobre as ruínas de um antigo templo romano.

“O ócio é inimigo da alma”, São Bento escreveu, em um trecho famoso da sua “Regra” — um conjunto de instruções para a vida monástica.

Pouco a pouco, os monges (chamados “beneditinos”) se multiplicaram pela Europa, e outras ordens monásticas surgiram. Elas foram essenciais para preservar a civilização clássica e, indiretamente, plantaram as sementes do Renascimento.

“O ócio é inimigo da alma”.

São Bento

É difícil estimar o tamanho da influência de São Bento. “A ordem beneditina forjou a Europa. Deu-lhe bases organizacionais, manteve as tradições literárias e filosóficas antigas ao preservar os documentos greco-romanos e orientou o mundo laico para criar uma organização de trabalho manual da forma como fazemos até hoje”, diz Ricardo da Costa, professor da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo) e especialista em História da Arte Medieval.

A inspiração chegou aos tempos atuais. O autor Rod Dreher fez sucesso com o livro “A Opção Beneditina”, publicado em 2017. Nele, o escritor afirma que São Bento deve servir de inspiração para os cristãos contemporâneos, cada vez mais rodeados por uma sociedade pós-cristã.

O professor Ricardo da Costa concorda que é possível traçar um paralelo entre a era de São Bento e o momento atual. “Vivemos sobre os escombros do que já foi chamado de civilização ocidental”, ele diz, listando a imigração muçulmana em massa para a Europa, o enfraquecimento da Igreja Católica, o desfiguramento das universidades e o profundo hedonismo da cultura popular.

Rafael Ruiz Gonzalez, doutor em História Social pela USP (Universidade de São Paulo) e professor de História e professor da UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), concorda que o mundo vive um ponto de inflexão agravado pela popularização das redes sociais e o enfraquecimento do debate público de ideias. “Precisamos reencontrar o valor da retórica, da opinião fundamentada, da argumentação racional e do convencimento”, afirma.

Ele alerta, entretanto, que não se deve ler autores de outras eras em busca de fórmulas prontas para ser aplicadas aos tempos atuais. “Santo Agostinho e São Bento conseguiram fazer a civilização ocidental ver que cada geração tem que redimir o seu próprio tempo”, diz Gonzalez. Para o professor, o mais importante é emular a disposição dos dois. “Eles souberam encontrar formas de viver — sem serem infiéis às suas crenças e decaírem da sua fé, e deram luz e esperança para muita gente. Essa atitude é o que vale a pena preservar e aprender”.

A lição dos estoicos: não se abalar, aconteça o que acontecer

Uma escola de pensamento profundamente influente na filosofia ocidental, o estoicismo surgiu com Zenão de Cítio, na Grécia do século 4 A.C. Esta corrente filosófica pregava que a busca desmedida pelos prazeres materiais impede o homem de encontrar a felicidade verdadeira, que reside na virtude moral.

Um dos principais representantes do estoicismo foi o autor romano Sêneca, no século 1º D.C. Em “A Vida Feliz”, ele descreve como a busca pela felicidade nos deleites materiais é uma ilusão. As agruras da vida, sejam elas quais forem, não devem ser capazes de abalar a força moral interior. “Um homem deve ser imparcial e não ser conquistado por coisas externas: ele deve se admirar, sentir confiança em seu próprio espírito e, assim, ordenar sua vida de modo a estar pronto para a boa ou para a má Fortuna”, disse.

Sêneca e o grego Epiteto, por sua vez,  influenciaram Marco Aurélio, imperador romano de 161 a 180 D.C. Ele foi uma rara manifestação do que Platão chamou de “filósofo-rei”.

Embora tenha vivido em um período de relativa estabilidade, o imperador romano tinha de lidar com um fluxo constante de conspirações, traições e conflitos políticos. Em suas “Meditações”, que são uma espécie de diário filosófico, ele lembra a si mesmo que a atitude adequada diante das adversidades é impedir que elas o abalem e assegurar que, o que quer que aconteça, ele deve seguir o caminho da justiça.

“Está em nosso poder não ter opinião sobre uma coisa, e não ser perturbado em nossa alma; pois as próprias coisas não têm poder natural para formar nossos julgamentos”, ele escreveu. Em outra passagem, Marco Aurélio diz que nada que vem de fora deveria lhe afetar: “Se você se angustia com alguma coisa exterior, não é esta coisa que o perturba, mas o seu próprio juízo sobre ela. E está em seu poder eliminar agora este juízo”.

Marco Aurélio tinha um estilo direto, sem floreios, para lembrar o destino inevitável de todo ser humano: “Em breve, muito em breve, você será cinzas ou um esqueleto, e um nome ou nem mesmo isso; mas o seu nome é som e eco. E as coisas que são muito valorizadas na vida são vazias e apodrecidas e insignificantes, e como cães pequenos mordendo uns aos outros, e crianças pequenas brigando, rindo, e então chorando imediatamente. Mas a fidelidade e a modéstia, a justiça e a verdade escapam. Até ao Olimpo, longe da terra de largos caminhos”, anotou.

“Em breve, muito em breve, você será cinzas ou um esqueleto, e um nome ou nem mesmo isso”

Marco Aurélio

Assim, se a civilização está em colapso e é impossível salvá-la, a melhor resposta é se refugiar na própria força moral. Quanto aos maus políticos e os péssimos ministros do STF, o conselho é simples: pagar com o mal é deixar que o inimigo vença. “A melhor maneira de se vingar é não se tornar como o malfeitor”, ensinou Marco Aurélio.

Cícero: denunciar a corrupção, custe o que custar

Antes de ser um império, Roma foi uma república. Marco Túlio Cícero viveu em um período de turbulência, em que o regime republicano já dava sinais de instabilidade.

Para Cícero, a vida mais elevada é a que lida com o que é comum a todos: a política. Ao mesmo tempo, influenciado por pensadores gregos na tradição de Platão e Aristóteles, Cícero acreditava que a verdade deveria ser proclamada a todo momento, a qualquer audiência. Por isso, em vez da retirada ou do silêncio, ele preferia o confronto: denunciar abertamente a corrupção, mesmo que fosse preciso pagar um preço por isso.

Em suas Catilinárias (uma coleção de quatro discursos feitos no Senado), ele denuncia outro político romano (Catilina) por tramar um golpe de Estado. O primeiro discurso ficou eternizado pelo tom incisivo logo de início: “Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há-de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há-de precipitar a tua audácia sem freio?”, indagou Cícero, que também se tornou conhecido pela retórica afiada.

Na ocasião, Cícero era cônsul de Roma. Catilina saiu derrotado. Mas, anos depois, Cícero pagou um preço alto por suas contendas contra a corrupção da política romana. Exilado, ele tentou retornar a Roma mas foi encontrado por assassinos. Consta que, rendido, ele ofereceu a própria cabeça ao punhal e se despediu da vida com as seguintes palavras: “Morra eu na pátria que tantas vezes salvei”.

Churchill: nunca desistir e transformar adversidade em força

Primeiro-ministro britânico durante a Segunda Guerra Mundial, Winston Churchill parecia acreditar que as palavras tinham o poder de transformar a realidade adversa. Para ele, a força para encarar o inimigo poderoso vinha do próprio fato de que o inimigo era poderoso.

Se o desafio que se apresenta é descomunal, melhor ainda: vencê-lo é a única maneira de obter uma glória descomunal. “Estes não são dias de escuridão; estes são grandes dias — os maiores que o nosso país já viveu; e todos nós devemos agradecer a Deus por nos permitir, cada um de acordo com a sua missão, fazer a sua parte e tornar estes dias memoráveis na história do nosso povo”, Churchill discursou, em 1941, em uma visita à escola em que estudara durante a infância. Àquela altura, o eixo formado por nazistas e fascistas já havia conquistado a maior parte da Europa.

Apesar do otimismo, Churchill não iludia a população britânica sobre as dificuldades à frente. Seu primeiro discursou ao Parlamento depois de se tornar primeiro-ministro, em 1940, descreveu um cenário de extrema dificuldade, ao qual só seria possível responder com uma determinação inesgotável: “Vocês perguntam, qual é a nossa política? Posso dizer: é guerrear por mar, terra e ar, com todas as nossas forças e com toda a força que Deus pode nos dar; guerrear contra uma tirania monstruosa, jamais superada no negro e lamentável catálogo dos crimes humanos. Essa é a nossa política. Vocês perguntam, qual é o nosso objetivo? Posso responder com uma palavra: é vitória, vitória a todo custo, vitória apesar de todo terror; vitória, por mais longo e difícil que seja o caminho. Pois, sem vitória, não há sobrevivência”.

“Nunca ceder à força; nunca ceder ao poder aparentemente avassalador do inimigo”

Winston Churchill

No ano seguinte, o primeiro-ministro fez uma de suas declarações mais famosas. Nela, ele descarta qualquer tentação de se render aos alemães. “Esta é a lição: nunca desistir, nunca desistir, nunca, nunca, nunca, nunca — em nada, seja grande ou pequeno, importante ou insignificante — nunca desistir a não ser às convicções da honra e do bom senso. Nunca ceder à força; nunca ceder ao poder aparentemente avassalador do inimigo”, disse ele.

O custo da vitória britânica na Segunda Guerra Mundial foi elevado, mas o custo da derrota seria muitas vezes maior. Ao fim, as palavras de Churchill foram tão importante quanto os tanques de guerra.

De Gaulle: liderança do exílio

A vitória dos aliados na Segunda Guerra também teve a participação fundamental de outro líder impetuoso: o general francês Charles de Gaulle. Como Churchill, ele demonstrou que a coragem por vezes é contagiosa.

Com sua terra natal tomada pelo inimigo e poucas forças militares à sua disposição, de Gaulle não ofereceu aos compatriotas a certeza da vitória; ele deu apenas a garantia de que a luta valia a pena porque a guerra ainda não estava decidida.

Em 1940, em Londres, de Gaulle fez um pronunciamento no rádio conclamando os franceses exilados a retomar a luta pela libertação de seu país.

“Devemos abandonar toda esperança? Será a nossa derrota final e irremediável? A essas perguntas eu respondo – Não!”

Charles de Gaulle

“É bem verdade que fomos, e ainda estamos, esmagados pelas forças mecanizadas inimigas, tanto no solo como no ar. Foram os tanques, os aviões e as táticas dos alemães, muito mais do que nossa inferioridade numérica, que forçaram os nossos exércitos a recuar. Foram os tanques, aviões e táticas alemães que proporcionaram o elemento-surpresa que levou os nossos líderes à situação atual. Mas será que a última palavra foi dita? Devemos abandonar toda esperança? Será a nossa derrota final e irremediável? A essas perguntas eu respondo – Não!”, ele disse.

De Gaulle chamou para si a responsabilidade de liderar a resistência francesa: “Eu, general de Gaulle, neste momento em Londres, apelo a todos os militares e a todos os homens franceses que estão atualmente em solo britânico, ou que possam vir a estar no futuro, com ou sem armas; apelo a todos os engenheiros e trabalhadores qualificados das fábricas de armamentos que estão atualmente em solo britânico, ou que possam estar no futuro, para entrarem em contato comigo. Aconteça o que acontecer, a chama da resistência francesa não deve e não vai morrer.”

Levou quatro anos, mas em 1944 de Gaulle e suas tropas, ao lado de ingleses e americanos, chegaram a Paris. O general tornaria-se o comandante máximo da França.

Pelágio das Astúrias: o grão de mostarda

Por volta do ano 720, toda a Espanha havia caído sob domínio islâmico. Liderados pelos mouros, os invasores tomaram conta da Península Ibérica e impuseram à população local a escolha entre a conversão ao Islã ou o status de cidadão de segunda classe.

Foi quando um guerreiro espanhol chamado Pelágio se reuniu com um pequeno grupo de soldados nas montanhas remotas das Astúrias, no extremo norte.

Não demorou para que os mouros cercassem as tropas de Pelágio, que se aproveitaram da vantagem geográfica para repelir os ataques. No combate decisivo, o exército mouro tinha ampla vantagem numérica diante de poucas centenas de combatentes espanhóis.

Os mouros concederam uma última oportunidade para que Pelágio e seus homens se rendessem. O relato mais tradicional sobre o episódio conta que o líder espanhol recorreu a uma metáfora bíblica quando, diante de um bispo católico cooptado pelos invasores, se recusou a entregar as armas: “Não lestes nas Sagradas Escrituras que a Igreja do Senhor chegará a ser como o grão de mostarda e crescerá de novo para a glória de Deus? Cristo é nossa esperança: que por este pequeno morro que vês seja a Espanha salva e restituído o exército dos godos.”

Ali, em um local chamado Covadonga, os homens de Pelágio obtiveram uma vitória milagrosa diante dos mouros. Nascia a Reconquista Espanhola — que, mais adiante, também daria origem ao reino de Portugal.

A retomada do território ibérico só se completou mais de 700 anos depois, em 1492. Assim como São Bento, Pelágio não viu as consequências de seus atos. Mas, assim como de Gaulle, ele manteve acesa a chama da resistência.

noticia por : Gazeta do Povo

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