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E se você é esperto provavelmente já percebeu que lá em cima, no título, quando falo “favela”, estou querendo dizer “comunidade”. Porque é disso que se trata a carta de hoje: a engenharia das palavras – uma técnica usada para constranger e submeter. Só não se constrange nem se submete quem ainda se agarra a um fiapo de liberdade. Espero que seja o seu caso. É o meu.
A palavra “favela”, elevada ou reduzida, a depender do ponto de vista, a uma “comunidade” é o melhor exemplo dessa maluquice. Para o morador do barraco com paredes de papelão e telhado de lata, não faz nenhuma diferença estar morando numa favela ou comunidade. Para quem usa “comunidade” no lugar de “favela”, contudo, a palavra é uma forma de olhar para o caos da favela e seus rebocos inacabados, e ver um daqueles bairros de filme norte-americano, com direito a cul-de-sac, gramadão sem muro e vizinhos que se frequentam em churrascos à beira da piscina.
Mais do que isso, para quem vive na segurança, limpeza e mordomia dos bairros mais abastados, chamar “favela” de “comunidade” é um jeito de sinalizar virtude e de se mostrar preocupado com a dignidade dos favelados (comunitariados?), tadinhos. Dignidade essa que, ao que parece, não lhes é tirada pela criminalidade, pela arquitetura improvisada e pelo esgoto a céu aberto, e sim… pelo uso desregulado da palavra “favela”.
Percebe o ar de condescendência e de superioridade moral de quem abandonou o termo “favela” e hoje faz campanha para que todos os locais sem saneamento e com altos índices de violência sejam chamados de “comunidade”? Percebe a necessidade de tapar o sol com a peneira e de se eximir da culpa? Taí: usar a linguagem que só eles entendem e admiram não tem a ver com o oprimido, e sim com a culpa do opressor. Uma culpa que tinha tudo para ser fértil e se traduzir em caridade, mas que em geral é apenas preguiçosa e se expressa pela hipocrisia.
Outro exemplo de palavra assim é a simpática (e meio ébria a esta hora da manhã!) “mendigo”, que ganha contornos infantis e divertidamente jecas quando pronunciada “mindigo”. A despeito da realidade andrajosa, que não muda, o mendigo primeiro virou “morador de rua” – termo que, vá lá, sugere uma espécie de escolha estoica pelo asceticismo radical. Depois virou “pessoa em situação de rua”, o que uma leitura generosa vai entender como “o sujeito está mendigo, mas não é mendigo”.
E, tudo bem, até gosto, gosto muito dessa possibilidade de redenção. Mas, convenhamos, chamar o sujeito que está na rua da amargura de “pessoa em situação de rua” não vai fazer com que ele recupere automaticamente a dignidade. Assim como chamá-lo de “mendigo” não é ofensa, e sim uma forma sucinta de retratar a realidade do sujeito.
Mais uma vez o que se vê aqui é o opressor tentando expiar uma culpa preguiçosa por meio da linguagem. Claro! Afinal, levar o mendigo para casa, dar banho, cortar o cabelo, tratar das feridas, lhe dar roupas, arranjar para ele uma ocupação e condições dignas para que ele se sustente… dá muito trabalho. Muito mais fácil é chamar de “pessoas em situação de rua”. E estamos conversados.
Ah, Paulo, mas as palavras às vezes denotam coisas ruins. Sim, denotam. É para isso que as palavras servem: para denotar e conotar. Coisas boas e coisas ruins, de acordo com a realidade ou imaginação do escritor. Todas as palavras denotam. E conotam. Quem não denota nem conota se trumbica, meu amor. E como fica? Fica na saudade, fica.
Por falar em ficar na saudade, são várias as palavras que correm esse que é o risco de desaparecer porque denotam ou conotam coisas ruins. “Analfabeto”, por exemplo. Outro dia fui chamado de preconceituoso por usar “analfabeto” para me referir jocosamente… a mim mesmo! “Louco”, “maluco”, “tantã” e similares também são termos incluídos na lista das Palavras Ameaçadas de Extinção. Tudo por capricho. Tudo por culpa. Tudo por causa dessa necessidade de ostentar virtude. De parecer o mais puro possível.
O curioso é que o meio usado para essa “purificação da linguagem” é justamente o da corrupção da linguagem. Difícil de entender? Não tem problema. Não se sinta burro. Nessa guerra pelo domínio lexical, se nem os combatentes entendem por que estão lutando, imagine a gente que é normal. Ou quase.
Por hoje fico por aqui. Aquele abraço do
Paulo.
[Esta coluna é uma reprodução da carta que chega à caixa postal dos assinantes toda sexta-feira. Se você ainda não se inscreveu, lá em cima, logo depois do segundo parágrafo, tem um campo para isso].
noticia por : Gazeta do Povo