“Se não fosse a comédia, ele não seria meu amigo”, confessa o humorista alagoano Abner Dantas, referindo-se ao parceiro Cássius Ogro. Com idades, perfis, histórias de vida e até posições políticas bem diferentes entre si, os dois praticamente só concordam num único ponto, que virou um lema repetido aos gritos pelo público de seus shows: “Que se dane o cancelamento!”.
A frase na verdade é um pouco mais pesada, mas vamos aos fatos. Formada em Maceió (AL), a dupla começou a se projetar nacionalmente nos últimos meses, graças à internet e a um repertório de piadas ácidas que não poupam nada e nem ninguém. Na verdade, seus textos mais engraçados são justamente sobre quem mais se incomoda com esse tipo de humor – os militantes de plantão, desde feministas a lacradores em geral.
Cássius e Abner ainda tiram sarro de outros comediantes, algo raro no meio artístico brasileiro, onde a hipocrisia reina em nome da manutenção das boas relações. Enfim: é como se sua chegada ao cenário, exatamente num momento de ameaça à liberdade de expressão, fosse uma resposta e um antídoto ao baixo astral atualmente em vigor.
Negros, nordestinos e de origem modesta, os dois não preservam nem eles mesmos. Abner, por exemplo, chegou a comprar briga com a própria família por tirar sarro de uma tatuagem que fez em homenagem a avó, já morta. Comparou, em um vídeo, o retrato desenhado com os personagens Zacarias (dos ‘Trapalhões’) e Beiçola (da ‘Grande Família’) – realmente parecidos com a falecida senhora, ou pelo menos com a figura reproduzida na pele do comediante. Uma tia não gostou da brincadeira e até ameaçou processá-lo.
Em uma edição de seu podcast no YouTube, ‘Caverna do Ogro’, Cássius comentou o novo filme da Pequena Sereia, protagonizado por uma atriz negra (como ele). “Não acho que esse tipo de representatividade seja boa para a negritude. Porque uma sereia negra vai ser morta tanto pela polícia, quanto pelos pescadores”, disse o humorista.
Mas a única – pelo menos por enquanto – grande campanha de cancelamento contra os dois partiu de um influencer que descobriu os vídeos da dupla e iniciou uma mobilização para denunciar e derrubar seus conteúdos. E a polêmica chegou à tevê, no programa ‘Melhor da Tarde’, exibido pela Band.
“É uma coisa inaceitável, um desrespeito. Mais que isso, é um crime. Eles deveriam tomar um processo coletivo. Quem sabe sendo presos alguma coisa entre na cabeça deles?”, afirmou a apresentadora Cátia Fonseca, apoiando a corrente de influenciadores militantes que se espalhou pelas redes sociais pedindo a cabeça dos humoristas. “Medidas serão tomadas”, chegou a prometer a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) – no entanto, nada de mais grave aconteceu, com exceção de dois shows cancelados por pressão da militância.
Em entrevista por telefone para a Gazeta do Povo, Cássius Ogro, de 31 anos, debochou do ocorrido. “Felizmente, até agora só fomos reprimidos pela Série C da mídia”, brincou, para depois falar sério. “A comédia, ao longo da História, sempre serviu como um instrumento a favor do ser humano, como uma forma de aliviar a dor. Mas o movimento woke quer fazer com que a sociedade veja o comediante apenas como um sádico.”
“Gente depressiva com o cabelo pintado de azul”
Colegas de profissão que Abner e Cássius consideram sem graça também entram na linha de tiro – a lista inclui nomes como Yuri Marçal, Fábio Lins e Thiago Ventura, entre outros. Até o popularíssimo Windersson Nunes já levou os seus pipocos (os dois costumam se divertir às custas da fama de marido traído do piauiense, ex da cantora Luisa Sonza).
E nem as representantes do chamado “novo humor feminino” escapam. Especialmente a paranaense Bruna Louise, cuja fórmula, segundo a dupla, se resume apenas a citar o órgão genital masculino e fazer uma careta em seguida.
Sobre a polêmica recente envolvendo o comediante de esquerda Tiago Santineli (que dramatizou o assassinato a pauladas do empresário Luciano Hang em um vídeo e passou ileso pelo julgamento da militância vermelha), Cássius não adota dois pesos e duas medidas. “Ele estava produzindo arte em um ambiente controlado, o canal dele, e também não acho que foi um incentivo à violência. Mas é claro que existe um cancelamento seletivo por parte dos esquerdistas. E isso tem uma raiz marxista. Se é o oprimido que está batendo no opressor, a agressão é justificada”.
“Ele não faz piada. O show dele é um monte de discurso”, diz Abner. E Ogro arremata: “Esses caras só têm uma carreira porque existe gente depressiva com o cabelo pintado de azul”.
Dupla trabalhou em um quiosque de açaí para pagar as contas
Nascido na cidade de Pojuca, localizada na Região Metropolitana de Salvador, Cássius se mudou para Maceió após ser aprovado no vestibular da Universidade Federal de Alagoas, onde se formou em Engenharia de Agrimensura. Antes disso, ele já havia pensado em ser artista – mas achou que seria impossível, pelo fato de ter nascido em uma família pobre. Foi encenando uma peça na Igreja Batista, já adulto, no papel do diabo, que o baiano descobriu seu potencial para a atuação.
Em um passo seguinte, comprou o livro ‘Segredos da Comédia Stand-up’, uma espécie de bíblia para os humoristas brasileiros iniciantes, escrito por Léo Lins. Daí para frente, mergulhou para valer no circuito de shows em bares, onde conheceu o parceiro Abner e com ele começou a produzir os próprios eventos.
Natural de Messias, cidade próxima a Maceió, Abner Dantas, de 22 anos, começou a trabalhar ainda criança. Foi ajudante de uma lan-house, garçom e operário em uma fábrica de tijolos, entre outras “correrias”. “Sempre fui mais caladão, mas do tipo que, de repente, soltava uma piada na sala de aula que fazia todo mundo rir”, diz Dantas, cujas maiores influências são comediantes negros norte-americanos (e polêmicos) como Dave Chappelle, Chris Rock e Patrice O’Neal.
Já ativos na cena do humor, os dois ainda trabalharam juntos em um quiosque de açaí para conseguir pagar as contas. A situação começou a melhorar quando ambos trocaram o comércio por empregos num estúdio de gravação de podcasts – onde tiveram a oportunidade de criar conteúdos para a internet, chamaram a atenção de produtores de outros estados e entraram na rota nacional de shows.
Os “gângsters da comédia”, como eles gostam de ser chamados, realmente não são muito parecidos. Mais falante e “filosófico”, Cássius é casado, pai de uma filha, cristão convicto e pende mais para o conservadorismo (“Ainda preciso ler mais livros para me considerar um conservador de verdade”, afirma).
Abner, por sua vez, posiciona-se mais à esquerda, e baseia muito de seu humor em suas vivências como um típico jovem das periferias brasileiras. “Preciso de dinheiro para mandar para a minha mãe e pagar uma escola particular para a minha sobrinha”, diz, questionado sobre a possibilidade de os dois se mudarem em breve para São Paulo, centro do mercado de stand-up comedy no Brasil.
Unida em prol da esculhambação geral, essa dupla improvável representa hoje a resistência (para usar uma expressão woke) do humor verdadeiramente engraçado – aquele implacável, no melhor sentido do termo, e, acima de tudo, livre. “Quando você pode fazer piada com todo mundo, quem se considera sagrado passa a ser desmascarado. É assim que a comédia humaniza as pessoas”, afirma Cássius.
noticia por : Gazeta do Povo