Por quase 100 anos, a esquerda política se orgulhou de ser o lado da paz e do antimilitarismo. A esquerda ocidental apoiou conversas de paz no Oriente Médio, defendeu uma solução de dois Estados para o conflito Israel-Palestina e pediu que as vidas de não-combatentes fossem poupadas.
Mas na última semana, vozes influentes na esquerda radical endossaram o brutal e horrível ataque terrorista do Hamas contra civis israelenses. Várias organizações de esquerda divulgaram declarações que pareciam endossar o ataque.
No dia seguinte ao Hamas matar 1.200 israelenses, os Socialistas Democráticos dos EUA (DSA, com membros como Alexandria Ocasio-Cortez, famosa deputada progressista de Nova York) realizaram um protesto “em solidariedade ao povo palestino e ao seu direito de resistir a 75 anos de ocupação e apartheid”.
Trinta e quatro organizações estudantis de Harvard assinaram uma declaração conjunta justificando o assassinato e sequestro de mulheres e crianças. “O regime do apartheid é o único culpado”, dizia a declaração. “Os próximos dias exigirão uma posição firme contra a retaliação colonial.”
A professora de Direito de Yale, Zareena Grewal, escreveu no X/Twitter, após o ataque, “Orações para os palestinos. Israel é um estado colonizador assassino e genocida, e os palestinos têm todo o direito de resistir através da luta armada, solidariedade.”
Líderes do Black Lives Matter (BLM, “Vidas Negras são Importantes”, grupo de ativismo que explodiu em popularidade em 2020) escreveram que estão “em solidariedade com nossa família palestina” e pediram às pessoas para “entender a resistência na Palestina como uma tentativa de derrubar os portões da maior prisão a céu aberto do mundo”. O BLM de Chicago postou uma imagem dizendo “Eu apoio a Palestina”, junto com uma silhueta de um parapente, referindo-se aos terroristas do Hamas que usaram esse modo de transporte para chegar a um festival de música onde mataram 260 jovens.
A esquerda mainstream não está fazendo isso. Alguns membros e líderes desses grupos de Harvard disseram que nunca viram a carta antes de suas organizações a assinarem. O colunista do New York Times, Nick Kristof, e a deputada Alexandria Ocasio-Cortez (do Partido Democrata) denunciaram esquerdistas por endossarem a violência. O membro do Congresso do DSA, deputado Shri Thanedar (democrata, Michigan), ontem renunciou à sua filiação. “A manifestação de rua de ódio e antissemitismo de domingo”, ele escreveu no X, “torna impossível” para ele se identificar com o DSA.
E outros tiveram que recuar. Tanto o BLM Washington quanto o BLM Chicago apagaram seu apoio ao ataque do Hamas: “Ontem, enviamos [mensagens] das quais não nos orgulhamos”, escreveu o BLM Chicago no X.
Enquanto isso, alguns à direita política expressaram sentimentos extremos. O senador republicano Lindsay Graham disse a Israel: “Estamos em uma guerra religiosa aqui… Arrase o lugar.” A candidata presidencial republicana Nikki Haley chamou os atos terroristas do Hamas de “um ataque aos Estados Unidos” e aconselhou o primeiro-ministro israelense Netanyahu: “Acabe com eles. Acabe com eles.”
Mas a resposta da esquerda é mais chocante e horrível devido ao alto padrão moral que a esquerda reivindicou para si através de seu papel histórico no movimento pela paz. O que a esquerda expressou em resposta à atrocidade do Hamas sugeriu uma incapacidade de ver israelenses inocentes como indivíduos que, assim como palestinos inocentes, não são responsáveis pelas ações de seu governo. Pior ainda, a resposta da esquerda glorificou a violência e transmitiu um desejo de retaliação.
A esquerda radical passou anos intimidando corporações e instituições acadêmicas a apoiar suas causas preferidas, como o BLM. A esquerda disse que esse apoio era para ajudar a acabar com a violência sem sentido e alcançar a justiça social. No entanto, esta última semana desacreditou a esquerda como uma voz razoável para a paz e a resolução de conflitos. As declarações da extrema esquerda comunicaram uma falta fundamental de humanidade e compaixão em um momento que deveria nos lembrar de nossa humanidade compartilhada.
O desaparecimento de uma visão de paz da esquerda deixou um enorme vácuo. Como isso aconteceu?
Ascensão e Queda do Movimento pela Paz
Após a Segunda Guerra Mundial, grande parte da esquerda na América do Norte e na Europa eram pacifistas. Em um nível global, socialistas e progressistas se distinguiram de conservadores e liberais da Guerra Fria, exigindo que os governos “banissem a bomba”. Esquerdistas seculares se juntaram a pacifistas religiosos, como os Quakers, para se opor ao militarismo, incluindo à guerra no Vietnã, a partir do início dos anos 1960.
A esquerda então tomou um rumo em direção ao radicalismo e extremismo no final dos anos 1960. Embriagados com o sucesso do movimento pelos direitos civis, que havia alcançado a maior parte de suas metas até 1964, os progressistas exigiram mudanças mais abrangentes. Muitos jovens progressistas educados reagiram ao secularismo e niilismo da cultura consumista ocidental, voltando-se contra o “sistema” capitalista democrático liberal como um todo.
A cobertura da mídia de notícias sobre atrocidades no Vietnã alimentou sua visão de que os EUA, a civilização ocidental e a democracia liberal deveriam ser violentamente derrubados, se necessário. Um grupo dissidente dos Estudantes por uma Sociedade Democrática tornou-se o Weather Underground [grupo de extrema-esquerda da Universidade de Michigan — os membros chamavam a si mesmos de weathermen, literalmente “homens do tempo”], e ativistas dos direitos civis se afastaram da visão neutra em relação à raça de Martin Luther King para abraçar as visões separatistas radicais dos ativistas mais jovens Malcolm X e Stokely Carmichael.
Mas tiroteios mortais, bombardeios e suicídios em massa por parte dos weathermen, organizações radicais negras e seitas nos anos 1970 levaram muitos progressistas a rejeitar o romantismo sombrio e o dogmatismo da esquerda radical. No âmbito doméstico, os progressistas retornaram às agendas reformistas de Ralph Nader [jurista de origem libanesa] e do Partido Democrata.
Nas décadas de 1980 e 1990, progressistas no Ocidente apoiaram movimentos revolucionários, mas em grande parte rejeitaram o terrorismo. Esquerdistas apoiaram os sandinistas na Nicarágua, o FMLN em El Salvador, os zapatistas no México e Hugo Chávez na Venezuela. Mas esses movimentos de insurreição estavam comprometidos, pelo menos oficialmente e publicamente, com tomar como alvos apenas combatentes armados e rejeitar alvos civis, uma tática pela qual culpavam seus inimigos.
Pouco depois desse período, o apoio ao movimento “Palestina Livre” evoluiu para o que se tornou o movimento “Boicote-Desinvestimento-Sanções” (BDS). Esquerdistas pró-Palestina tendiam a ser mais radicais e mais favoráveis à violência do que seus homólogos focados em movimentos de “libertação” na América Latina e na África, mas, notavelmente, a violência também estava mais focada em combatentes armados do que em civis.
O movimento pró-Palestina há muito considera que tem uma certeza moral e que está lutando contra a ocupação ilegal e o apartheid. Devido ao pensamento tudo ou nada e ao fervor moral, o movimento falhou em se diferenciar das visões e táticas do Hamas e se tornou cada vez mais radicalizado.
Parte do radicalismo do movimento palestino era orgânico e parte era inorgânico. O Irã fornece armas, financiamento e treinamento ao Hamas.
E em seu segundo mandato como primeiro-ministro, Netanyahu canalizou dinheiro para o Hamas como um contrapeso ao Fatah, o movimento político secular que controla a Autoridade Palestina], que governa a Cisjordânia ocupada. Netanyahu, entre 2012 e 2018, aprovou o envio de um bilhão de dólares do Catar para Gaza, “pelo menos metade disso chegou ao Hamas, incluindo sua ala militar”, segundo o Haaretz, o jornal de referência de Israel.
“O objetivo da doutrina”, observou o Haaretz, “era perpetuar a divisão entre o Hamas em Gaza e a Autoridade Palestina na Cisjordânia. Isso preservaria a paralisia diplomática e removeria para sempre o ‘perigo’ de negociações com os palestinos sobre a divisão de Israel em dois Estados — com o argumento de que a Autoridade Palestina não representa todos os palestinos.”
Na América do Norte e Europa, esquerdistas do BLM, DSA e outros competiram sobre quem era mais moral, com “moralidade” definida como “mais à esquerda”. Esses esquerdistas radicais não eram esquerdistas sindicais trabalhando como zeladores ou operários de fábrica, mas sim estudantes, jornalistas, funcionários de organizações sem fins lucrativos e membros da classe profissional-gerencial.
Os pais desses esquerdistas da geração millenial mimaram seus filhos, aumentando os traços de narcisismo, incluindo um senso de merecimento, grandiosidade, excesso de empatia por “vítimas”, falta de empatia em relação a “opressores” e “mente dividida”, que é ver o mundo em termos absolutos, de tudo ou nada. Esse narcisismo foi a base para o extremismo e a desumanização visíveis nas últimas semanas.
Esse forte senso de merecimento e apoio à violência pode ser visto em Zareena Grewal, professora de Direito de Yale que elogiou o terrorismo do Hamas. Em 2015, ela defendeu publicamente estudantes que tentaram demitir dois outros professores de Yale, Nicholas e Erika Christakis, depois que eles se manifestaram a favor da liberdade de expressão.
Jovens ativistas identitários pró-Palestina e anti-Israel provavelmente estão, como outros em sua faixa etária, em uma escala mais alta no espectro do narcisismo do que seus pais e avós. Além disso, eles não têm memória dos horrores do terrorismo como os esquerdistas pós-1968 tinham. Poucos tinham família ou amigos que viviam em Israel ou nos territórios ocupados, então eles não arriscaram a própria pele no jogo e o viam como apenas isso — um jogo.
Sem qualquer responsabilidade pelas consequências de seus comportamentos, jovens esquerdistas radicais se sentem poderosos promovendo violência, seja contra apoiadores de Trump em 2016 e 2017, contra a polícia durante os distúrbios do Black Lives Matter em 2020, ou hoje contra civis israelenses. Muitas vezes, os apelos à violência por esses jovens esquerdistas radicais são mais niilistas do que antissemitas. Não é tanto que eles odeiem o povo judeu e mais que eles estão intoxicados por seu próprio poder.
Hora de Proteger
O feio apoio mostrado por esquerdistas ocidentais ao Hamas cria espaço para chamados também feios da direita para “arrasar” Gaza. Muitos à direita nos últimos dias perguntaram por que se espera que os israelenses deveriam seguir as Convenções de Genebra se o Hamas não o fizer. O Hamas mata civis para obter uma vantagem militar, dizem eles, e usa civis como “escudos humanos”. Por que alguém deveria pedir a Israel para seguir o direito internacional, como o presidente Biden fez?
Mas a revolta com a retórica desumanizadora da esquerda e da direita forçou seus aliados de coalizão a emitir denúncias públicas. Progressistas que resistiram ao apoio da extrema esquerda ao terrorismo incluíram Jonathan Chait na New York Magazine e Noah Smith no Substack. Conservadores que resistiram à fanfarronice da direita incluíram Mike Cernovich e Tucker Carlson.
E algumas novas vozes também surgiram. Isaac Saul, um autodescrito moderado da revista Tangle News, viralizou com uma postagem honesta e moderada no X/Twitter. “As pessoas me perguntam o tempo todo se sou ‘pró-Israel’ porque sou um judeu que viveu em Israel”, escreve Saul, antes de explicar que tal rótulo simplista “não captura adequadamente a nuance de pensamento que a maioria das pessoas tem ou deveria ter.”
Saul condena o terrorismo do Hamas e então oferece uma percepção perspicaz:
“Sou pró-Israel ou pró-Palestina? Não faço ideia. Sou pró-não-matar-civis. Sou pró-não-prender-milhões-de-pessoas-em-prisões-a-céu-aberto. Sou pró-não-atirar-em-avós-na-nuca. Sou pró-não-arrasar-complexos-de-apartamentos. Sou pró-não-estuprar-mulheres-e-fazer-reféns. Sou pró-não-prender-injustamente-pessoas-sem-devido-processo. Sou pró-liberdade e pró-paz e pró-todas as coisas que nunca vemos mais neste conflito.”
Em sua postagem, que até agora foi vista por 9,8 milhões de pessoas, Saul soa mais como o melhor dos ativistas progressistas de justiça social das décadas de 1980 e 1990, que estavam focados na “construção de paz” a partir da base, não no moralismo das redes sociais.
O que é necessário não é tanto um novo pacifismo quanto um novo pragmatismo. “Parem de lutar” não vai resolver, pelo menos por enquanto. Mas as pessoas que genuinamente se preocupam com o povo de Israel e dos territórios ocupados podem, no mínimo, exigir que todos os lados obedeçam às Convenções de Genebra enquanto estiverem em guerra.
Por grande parte do último século, a esquerda radical foi sinônimo de paz e anti-militarismo. Sua celebração do terrorismo do Hamas mostra o quanto isso mudou. Mas isso significa que pode mudar novamente. Cabe aos agentes de mudança moderados, tanto da esquerda quanto da direita, exigir que as vidas de não-combatentes sejam poupadas e que os líderes levem a sério uma solução de longo prazo.
©2023 Public. Publicado com permissão. Original em inglês.
noticia por : Gazeta do Povo