“Hoje estou aqui para dizer-lhes que o Ocidente está em perigo. Está em perigo porque aqueles que deveriam defender os valores do Ocidente são cooptados por uma visão de mundo que conduz inexoravelmente ao socialismo e, consequentemente, à pobreza”, disse Javier Milei ao iniciar seu discurso no Fórum Econômico Mundial de Davos na quarta-feira (17), marcando desde o princípio a sua disruptiva postura política.
Ao assumir a presidência da Argentina, o “Leão” (chamado assim pelos seus apoiadores) estabeleceu uma mudança no panorama latino-americano que vinha cedendo a uma “maré vermelha” nos últimos 5 anos. Sua forma incisiva de falar, seu estilo rockstar e seu posicionamento favorável à mínima intervenção do Estado, à redução dos gastos públicos, ao combate à corrupção, ao livre mercado e à batalha cultural, o levaram a ser o eixo principal de um novo cenário na região que agora deverá se reorganizar.
A vitória do liberal libertário (como se autodenomina) desencadeou reações a favor e contra que prenunciam tempos de tensão em uma América Latina tão polarizada. Desde o começo de sua campanha, Milei optou por alinhar-se com líderes ferrenhos do conservadorismo e do liberalismo. Jair Bolsonaro foi o primeiro a demonstrar apoio ao então candidato direitista. Em agosto de 2023, o 38.º presidente do Brasil gravou um vídeo no qual expressou que tinham “muitas coisas em comum”, lhe desejou sorte nas eleições e prometeu que o visitaria. Após a mensagem de respaldo, Milei disse que agradecia “infinitamente ao presidente Bolsonaro pelo seu carinho, por se arriscar e pelo apoio”.
Contudo, essa aproximação entre os dois líderes da direita não agradou a todos. Ao vencer as eleições, o atual presidente da Argentina convidou Bolsonaro e sua família para a posse em 10 de dezembro do ano passado e determinou que ele recebesse o mesmo tratamento que qualquer outro chefe de Estado. Javier Milei também convidou Lula Da Silva para a posse, no entanto, o petista teria rejeitado o convite “porque se sentiu pessoalmente ofendido”, de acordo com o seu conselheiro especial para assuntos internacionais, Celso Amorim.
Acontece que durante a campanha, o ex-deputado disse, em entrevista a Tucker Carlson, que não faria “negócios com a China” e nem “com qualquer comunista”. “Sou um defensor da liberdade, da paz e da democracia. Os comunistas e chineses, como Putin e Lula, não entram aí”, afirmou. Apesar do posicionamento, Milei também explicou que isso não significa que, caso fosse eleito, os empresários argentinos não teriam liberdade para negociar com quem bem entenderem, “se querem fazer negócios com China, Rússia, com Brasil, com quem seja, problema dos argentinos”, concluiu.
Outro ato que teria enfurecido ao líder do PT, foram as acusações de interferência do Brasil nas eleições da Argentina por meio de uma colaboração financeira à campanha de seu adversário, Sérgio Massa. Para Guilherme Frizzera, Mestre em Integração Regional pela USP e Doutor em Relações Internacionais pela UnB, embora tenham trocado farpas, “isso dificilmente irá afetar as relações” entre ambos países, é preciso “separar o governante, que é aquele que exerce o cargo temporário, e as relações entre os Estados que existiam antes, que continuam existindo e que vão continuar após a saída desse governante”.
Ditadores e radicais ficaram incomodados
Mas Lula não foi o único a enxergar com “maus olhos” a eleição do economista no país vizinho. O presidente da Colômbia, o esquerdista radical Gustavo Petro; o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro; e inclusive o ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, teceram duras críticas ao libertário.
Um dos motivos foi pela decisão de Javier Milei de não convidar os ditadores do Irã, Venezuela, Cuba e Nicarágua para a sua cerimônia de posse devido à sua constante violação dos direitos humanos e ao apoio permanente ao terrorismo internacional, o que teria provocado o anúncio do regime da Nicarágua sobre a retirada de seu embaixador na Argentina.
“Diante das reiteradas declarações e expressões dos novos governantes, o Governo (…) procedeu à retirada de seu Embaixador, companheiro escritor e comunicador Carlos Midence. A retirada entra em vigor imediatamente”, anunciou o ministro das Relações Exteriores da Nicarágua, Denis Moncada, em um breve comunicado divulgado em 4 de dezembro de 2023 pela imprensa oficial de Manágua.
As declarações do atual chefe de Estado da Argentina afirmando que tampouco promoveria relações com Venezuela, Cuba e Nicarágua por serem “ditaduras comunistas” também irritou os três países, que são exatamente ditaduras e comunistas.
Por sua parte, Nicolás Maduro afirmou, um dia após a vitória de Milei, que “a extrema-direita neonazista venceu na Argentina”. “Aos argentinos, dizemos: vocês escolheram, mas não vamos ficar calados, porque a chegada de um extremista de direita com um projeto colonial, absolutamente colonial, ajoelhado diante do imperialismo norte-americano, é uma ameaça tremenda”, concluiu o ditador, de cujo governo participava, até não muito tempo atrás, um defensor de Hitler.
Após a publicação de um Mega Decreto de Necessidade e Urgência (conhecido pelas suas siglas D.N.U) que contempla a desregulamentação da economia, o líder da esquerda na Venezuela, também realizou ataques ao mandatário argentino e qualificou o texto como uma “loucura” e um “desastre”. “Olhem o desastre da Argentina. Se deram conta? Loucura! Um decreto ditatorial do presidente neonazista de extrema direita da Argentina, eliminando todos os direitos do povo, acabando com a soberania econômica da Argentina”, apontou.
No entanto, as críticas não pararam por aí. Na segunda-feira (15), Maduro descreveu o liberal libertário como um “erro fatal” na história do seu país e da América Latina , devido às suas políticas económicas, especialmente a sua ideia de implementar uma redução drástica do Estado. “Não desejo que você retifique, mas espero que esta mensagem chegue até você, que você está errado (…) Você é um erro na história da América Latina, Milei, um erro fatal na história da Argentina”, disse em mensagem anual perante a Assembleia Nacional, em Caracas.
Pouco depois, o presidente argentino respondeu à mensagem de Maduro e disse que “não esperava TANTO ELOGIO…!!!”. “O empobrecimento socialista de Maduro dizendo que sou um erro histórico na América Latina confirma que estamos no caminho certo…!!!”, expressou enquanto aguardava o voo para Zurique, na Suíça.
Gustavo Petro foi outro dos líderes latino-americanos que entrou nesta queda de braço com Javier Milei. O presidente da Colômbia, disse que a vitória do “Leão” representou uma notícia “triste” para a América Latina. “A extrema direita venceu na Argentina; É a decisão da sua sociedade. É triste para a América Latina e veremos… o neoliberalismo não tem mais proposta para a sociedade, não pode responder aos problemas atuais da humanidade”, publicou em suas redes sociais.
Mas Nayib Bukele, presidente de El Salvador, que havia parabenizado Milei pela sua vitória e que o considera como aliado, respondeu à publicação de Petro em tom de burla, “agora diga sem chorar”.
O presidente da Colômbia também chegou a postar no X (Twitter), que o governo vai repatriar 20 mil estudantes colombianos que estudavam gratuitamente na Argentina, após medida anunciada em projeto de Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos (enviada pelo atual Governo ao Congresso) que estabelece cobrança para alunos estrangeiros que frequentam universidades públicas argentinas. A decisão afeta apenas àqueles que não têm residência definitiva no país.
“Receberemos 20 mil estudantes colombianos que estudavam gratuitamente na Argentina. Eles serão literalmente expulsos do país, para eles não houve a chamada ‘liberdade”, afirmou Petro.
Frases ao vento
Para o Doutor Fernando Pedrosa, professor e pesquisador da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, longe de se tornar uma preocupação, “as críticas de Petro e Maduro devem ser tomadas no quadro desta polaridade direita-esquerda em que ambos são os elementos mais extremistas da atual política latino-americana. (…) Acredito que não tenha grande importância e não tenha impacto na Argentina. Eles também fazem isso para agradar seus seguidores. É algo que não custa nada para o Maduro e o Petro, é só falar”
Apesar desta polaridade no continente americano, chefes de Estado da esquerda parabenizaram Milei pela sua eleição e o chamaram para dialogar, como foi o caso, por exemplo, do Luis Arce, presidente da Bolívia; e de Gabriel Boric, presidente do Chile; que esteve presente na cerimônia de posse do ex-deputado. Os mandatários mais alinhados à direita também respaldaram o economista, como foi o caso de Daniel Noboa, presidente eleito do Equador; Santiago Peña, presidente do Paraguai; Luis Lacalle Poe, presidente do Uruguai; e do próprio Nayib Bukele, presidente do El Salvador.
Novo tabuleiro político
Em 2024, serão realizadas eleições presidenciais na Venezuela (segundo semestre, ainda não há data definida), El Salvador (fevereiro), Panamá (maio), República Dominicana (maio), México (junho) e Uruguai (outubro).
De acordo com Pedrosa, ”estamos vendo essas mudanças de governos, onde embora a esquerda tenha maioria, não se vê que seja algo que possa ser consolidado ao longo do tempo, nem no sentido inverso. Petro perdeu as eleições regionais, Boric não pôde sancionar a sua constituição, Corrêa não pôde impor o seu candidato, a esquerda boliviana quebrou. Mas Lasso teve que sair e não parece fácil para Lacalle Pou encontrar um sucessor que repita o sucesso do Partido Nacional. Estamos assistindo manifestações de eleitores que mostram mais o seu desacordo com os partidos no poder do que o seu apoio ideológico a longo prazo”.
Frizzera também concorda em que está havendo no continente “uma tendência de castigo, onde os eleitores estão elegendo candidaturas oposicionistas aos governos de turno, seja de direita ou de esquerda”.
Em relação às eleições deste ano, o professor e investigador argentino acredita que o partido de Andrés Manuel López Obrador (AMLO) “vai vencer novamente com a sua candidata” e que a “Frente Ampla tem boas chances de retornar ao governo uruguaio”. “Donald Trump também tem chances de vencer, mas isso tem a ver com dinâmicas internas e não regionais”, enfatizou.
Por sua parte, o doutor em Relações Internacionais pela UnB faz uma análise semelhante ao de Pedrosa. Frizzera diz que diferentemente de grande parte dos países da região, “hoje espera-se que não ocorra um voto de castigo no México. O atual presidente é extremamente popular”. No caso dos demais países, com exceção da Venezuela e de El Salvador (considera que lá não há regimes democráticos), Frizzera pensa que a população sim fará uso do “voto castigo”.
Com este novo cenário definindo-se, Milei deverá eleger as melhores estratégias e aliados que lhe servirão de base no momento de estabelecer suas políticas internacionais. Sua renúncia à entrada aos BRICS e suas recentes críticas aos modelos socialistas em seu discurso no Fórum Económico Mundial, em Davos, desenham o caminho pelo qual o liberal libertário deve trilhar buscando alinhar-se com países como os Estados Unidos e Israel.
noticia por : Gazeta do Povo