Depois de mais de 70 anos de monitoramento e vigilância, o governo alemão finalmente proibiu as atividades da Artgemeinschaft, uma espécie de seita neonazista e anticristã com cerca de 150 membros espalhados pelo país.
Até então registrado legalmente como uma associação convencional, o grupo (cujo nome em português significa “Comunidade de espécies”) foi oficialmente banido no final de setembro, por conta de suas atividades consideradas suspeitas, extremistas e perigosas – que incluíam a doutrinação de crianças.
A distribuição de livros infantis com mensagens racistas e antissemitas parece ter sido o motivo decisivo para que o governo alemão autorizasse uma ação policial contra a organização. No último dia 27, uma operação de busca e apreensão realizada em 12 dos 16 estados do país recolheu armas, coletes à prova de balas, ouro, dinheiro em espécie, símbolos referentes ao Terceiro Reich e toda a sorte de material impresso contendo discursos de ódio.
“Esse é outro duro golpe contra o extremismo e os incendiários intelectuais que continuam a disseminar ideologias nazistas até hoje”, disse a ministra do Interior, Nancy Faeser. “Esse grupo tentou criar novos inimigos da Constituição com sua doutrinação repugnante de crianças e jovens.”
Mas por que uma organização tão pequena, com menos duas centenas de integrantes, recebeu tanta atenção, a ponto de mobilizar 700 policiais durante a ação ocorrida em setembro? Segundo as autoridades alemãs, a Artgemeinschaft é um elo entre várias outras correntes ultrarradicais do país. Uma “cena” que movimenta quase 40 mil pessoas, muitas delas classificadas pelo governo como “potencialmente violentas”.
Ou seja: à primeira vista restrito e fechado, o grupo utilizava seu status legalizado para disseminar mensagens e articular conexões por todo o território germânico. Parte de sua estratégia consistia na promoção de eventos ditos culturais ou associados à espiritualidade pagã (como a observação de solstícios e equinócios), mas que, na verdade, serviam de pano de fundo para a doutrinação ideológica.
Na superfície, a Artgemeinschaft defende o nacionalismo étnico e uma postura anti-imigração. No entanto, é importante não confundir seus preceitos com os do conservadorismo e da direita tradicionais, que operam dentro dos limites da lei e do sistema político estabelecido. Para o governo alemão, seus posicionamentos ameaçam a democracia e a coesão social, pois incentivam a violência e a discriminação – e, por esses e outros motivos, são taxados de neonazistas.
Organização surgiu logo após a derrota alemã na Segunda Guerra
A fundação da organização, em 1951, é atribuída a Wilhelm Kusserow (1901-1983), um professor interessado na preservação das antigas tradições espirituais e da identidade cultural da Alemanha (então recém-derrotada na Segunda Guerra Mundial). Nesse contexto confuso e sem esperança para os alemães, suas ideias ganharam eco e influenciaram outros pensadores e grupos extremistas.
Para se ter uma ideia de como a Artgemeinschaft é articulada (vamos usar o verbo no presente, porque o banimento não significa sua extinção), sua estrutura conta com cinco subdivisões. Começando pelo Gefährtschaften, o “Eixo dos companheiros” – espinha dorsal composta por membros mais antigos, responsáveis pela manutenção dos ideais e o fortalecimento de laços internos.
Já a Guilden (“Guilda” ou “Associação”) é um guarda-chuva que abriga subgrupos de interesse em áreas como arte, cultura, espiritualidade, etc. Sua função é proporcionar aos integrantes o aprofundamento em tópicos específicos – sem, é claro, perder o alinhamento com a ideologia geral.
Freundeskreise (“Círculo de amigos”) se dedica a promover reuniões e atividades sociais, com a finalidade de criar uma sensação de comunidade. Apesar de ser considerada a divisão mais “solta” do Artgemeinschaft, é considerada fundamental para que o grupo seja visto como uma associação entre tantas outras existentes no país.
Por fim, porém não menos importante, há o Familienwerk (“Obra familiar”). Esta ala se concentra em questões familiares e educacionais importantes para a preservação da identidade étnica alemã. Um de seus pilares é a ideia de que os membros devem escolher um “cônjuge adequado”, da raça dita superior, para transmitir a composição genética “correta” às próximas gerações. Foram justamente as atividades da “obra” com crianças que mais preocuparam as autoridades germânicas ao longo dos anos.
Grupo registrou como marca um símbolo que rejeita o cristianismo
Mas o que diferencia o Artgemeinschaft de outros movimentos neonazistas é o seu lado místico – e anticristão. Sua doutrina incorpora elementos do paganismo germânico, com ênfase na adoração de deidades antigas e rituais relacionados à natureza. Isso, por si só, não caracterizaria um ataque ao cristianismo, apenas uma incompatibilidade.
Um dos ícones utilizados pelo grupo, no entanto, revela sua face intolerante. Trata-se do desenho de uma águia agarrando um peixe, que simboliza a rejeição ao cristianismo e já foi adotada por outras correntes radicais.
Conhecida como “Adler fängt Fisch”, a imagem chegou a ser registrada legalmente, em 2003, como uma marca da organização por seu líder na época, o advogado antissemita Jürgen Rieger (1946-2009) – figura proeminente do nacionalismo alemão.
“O extremismo de direita tem muitas faces. E uma delas é usar essa cobertura de crença germânica pseudorreligiosa para difundir uma visão de mundo que viola a dignidade humana”, afirmou a ministra do Interior da Alemanha, Nancy Faeser, após as operações que resultaram na proibição da seita.
noticia por : Gazeta do Povo