VARIEDADES

Meu namorado é um robô: a ascensão da intimidade artificial

Atencioso, discreto, sabe sempre o que dizer, não exige
muita atenção, pergunta como foi seu dia, lembra que livro você está lendo e
quando foi ao médico. Resumindo, o namorado perfeito. Com o pequeno detalhe de
que também é uma inteligência artificial.

Criados por um algoritmo, treinados em conversas com você e
acostumados a sempre dizer o que você quer ouvir, os namorados virtuais estão
passando por um boom nesta era tecnológica onde tudo – inclusive o amor e os
relacionamentos íntimos – é suscetível à virtualização.

Aplicativos como Replika, Xiaolce ou CarynAI oferecem uma
experiência de relacionamento pessoal com inteligência artificial em que o
usuário pode ter conversas (e outros tipos de trocas dependendo do tipo de
assinatura) que simulam a interação humana. Na maioria dos casos, os usuários
escolhem o modo romântico.

Se você está se perguntando quem poderia ficar viciado em
algo assim, a resposta é muitas pessoas. Segundo dados da própria empresa,
Replika, ela possui 2 milhões de usuários ativos e 500 mil assinantes pagantes.

E não é de admirar. O que está por trás dessas aplicações é
uma rede de tecnologias poderosas que, embora imperfeitas, estão sendo
treinadas para conhecer e satisfazer os desejos mais profundos do ser humano.

Em seu livro Intimidade Artificial: amigos virtuais, amantes
digitais e casamenteiros algorítmicos, o biólogo evolucionista Rob Brooks
define esse conjunto de tecnologias como “Intimidades Artificiais”. O autor os
descreve como “máquinas construídas para nos mostrar o que precisam que
vejamos, ouçamos ou sintamos”, e projetadas para responder à nossa necessidade
humana de conexão, intimidade e amor.

A ascensão da intimidade artificial

A intimidade artificial não apareceu com os namorados
virtuais. Na verdade, a tecnologia vem explorando há anos sua capacidade de
encontrar a chave para as paixões que movem os humanos.

Redes sociais, algoritmos de aplicativos de namoro ou assistentes virtuais passaram anos explorando o desejo de intimidade e conexão

As redes sociais, por exemplo, já exploram o desejo das
pessoas de se conectarem. Os brinquedos sexuais e os robôs mercantilizaram o
prazer sexual a um limite inimaginável. Assistentes virtuais tendem a agir mais
como amigos do que como secretária pessoal.

Em geral, Brooks divide as intimidades artificiais em
amantes digitais, amigos virtuais e algoritmos de matchmaking que conectam
perfis a outros. Porém, ele ressalta que cada vez mais outras aspirações da
pessoa também encontram seu nicho tecnológico, como manter presentes entes
queridos falecidos ou confessar os pensamentos mais ocultos.

Na verdade, um bot popular no Discord permite ao usuário confessar
de forma anônima tudo o que deseja. Não subestime a necessidade humana de
desabafar os pensamentos ou a consciência.

Por que recorrer a uma IA

Se a grande maioria dos utilizadores de redes sociais
consegue admitir que tem uma relação viciante com estas plataformas, não é de
estranhar que alguém consiga desenvolver uma relação pessoal com a inteligência
artificial.

Em primeiro lugar, a tecnologia é altamente desenvolvida. E
ficará cada vez melhor. Se permanecermos apenas no nível conversacional, a
inteligência artificial já é capaz de reproduzir conversas humanas íntimas de
uma forma quase indistinguível.

Não se esqueça do óbvio: eles são projetados para aprender o
máximo possível sobre o usuário, dar-lhe o que ele deseja e fisgá-lo para que
ele volte para saber mais.

Em segundo lugar, as relações pessoais com os outros são
complexas e vêm acompanhadas de uma boa dose do que se entende como corações
partidos. Não é de estranhar que haja quem queira poupar essa parte, podendo
ter apenas o pack que inclui atendimento personalizado e disponibilidade
exclusiva.

Assim, as relações digitais são utilizadas como cães-robôs
dados a crianças que desejam um animal de estimação, mas que não estão
preparadas para assumir a responsabilidade e os transtornos que um animal real
acarreta.

O desejo de independência, a solidão ou a frustração são motivos que podem levar ao estabelecimento de uma relação com uma inteligência artificial, mesmo que não seja a resposta

Rosanna Ramos, que mantém relacionamento com uma inteligência artificial da Replika chamada Eren, reconhece a mesma coisa. “Com Eren, não preciso estar disponível várias horas por dia. Se eu ficar cansado, posso parar no meio da conversa e desligar o aplicativo. Não preciso continuar participando. Se eu ficar entediado, posso mudar de assunto e falar sobre outra coisa, e não preciso lidar com nenhuma frustração. Posso continuar com meus próprios interesses e contar a ele sobre isso”, escreve ele em depoimento à revista Newsweek.

No entanto, são muitos os motivos pelos quais uma pessoa pode acabar nesta situação, e eles são complexos, variados e, muitas vezes, escondem um grande sofrimento. Como descreve The Cut, uma mulher que sofreu um aborto traumático e que tem dois filhos no mundo digital; outra usa seu namorado robô para fazer frente a seu namorado verdadeiro, que a maltrata verbalmente; uma terceira recorre ao sexo virtual durante a doença terminal do marido.

Em suma, o uso da inteligência artificial como amigos ou
amantes, em vez de envergonhar aqueles que a utilizam, fala-nos dos anseios e
do sofrimento humanos. E é especialmente relevante entender isso se você quiser
entender por que a tecnologia está evoluindo nessa direção.

Afinal, estamos numa sociedade com taxas de solidão
altíssimas e na qual os jovens se sentem mais isolados e têm menos
relacionamentos românticos do que nunca.

Pornificação dos relacionamentos, mercantilização do desejo e coleta de dados

Ainda que o uso de intimidades artificiais seja
compreensível, isso não significa que seja a resposta aos desejos que
mercantiliza. Nem que esteja isento de riscos e considerações éticas.

Primeiro, os especialistas apontam para o problema dos
dados. Se já se sabe que a coleta de dados pelas plataformas serve para que as
empresas alcancem mais usuários, não é preciso ir muito longe para imaginar a
implicação dos dados se tornarem cada vez mais íntimos.

“Esses algoritmos poderiam usar o que sabem sobre nossas
amizades, relacionamentos íntimos e talvez até mesmo sobre nossa vida sexual
para nos encontrar com empresas que desejam clientes. Os profissionais de
marketing poderiam usar novas técnicas de intimidade artificial para nos vender
os produtos de que mais precisamos e para criar uma fidelidade à marca mais
profunda do que nunca”, reflete Brooks em seu livro.

Outro aspecto é a pornificação dos relacionamentos virtuais.
Goste ou não, muitos desses relacionamentos online terminam em uma tendência
sexual que as plataformas nem sempre estão preparadas para controlar.

Esse foi o caso do CarynAI, um chatbot baseado em voz que
foi treinado para imitar a influenciadora Caryn Marjorie, que tem cerca de 1,8
milhão de assinantes no Snapchat e centenas de milhares em outros aplicativos
como Instagram e TikTok.

CarynAI, segundo seu criador, é uma forma de estar mais
próximo de seus seguidores. Porém, logo após seu lançamento, ele assumiu um
caráter sexual e se tornou uma espécie artificial do Only Fans [NT: rede social
largamente utilizada para comercialização de conteúdo pornográfico].

“Um dos elementos mais preocupantes é a comercialização de
relacionamentos que utilizam ferramentas de inteligência artificial. À medida
que a crise da solidão piora, as empresas continuarão a ver isto como um
mercado que se encherá de soluções temporárias, como parceiros de IA”, também disse
à Newsweek Alec Stubbs, pós-doutorando em filosofia e tecnologia na
Universidade de Massachusetts, em Boston.

Dominação

Stubbs também teme que os relacionamentos virtuais reflitam
padrões de controle e dominação de relacionamentos tóxicos.

“O casal de inteligência artificial pode ser programado para
atender necessidades específicas e não as dos outros, pode ser programado
apenas para servir e nunca exigir, mas relacionar-se com os outros é reconhecer
a exigência infinita de ser uma criatura social: o que devemos aos outros é tão
importante para os outros quanto o que nos é devido. A reciprocidade é a pedra
angular das relações humanas”, reflete Stubbs.

Basta olhar para as alegações publicitárias de algumas
destas inteligências artificiais para perceber que a preocupação de Stubbs não
é desproporcional.

“Controle tudo como quiser”, diz o slogan do aplicativo de
noivas Eva AI. “Conecte-se com um parceiro virtual de IA que ouve,
responde e aprecia você.”

E talvez ainda mais explícito seja o da IA ​​Romântica:
“Você já sonhou em ter a melhor namorada do mundo? Quase certo. Agora pode
estar ao seu alcance. Escolha em nossa biblioteca ou crie a sua própria! Para
rir de suas piadas. Para apoiá-lo em momentos críticos. Para permitir que você
saia com seus colegas sem drama. Você quer ser macho? Ela vai ficar
deslumbrante!”

Preocupante, para dizer o mínimo.

Um fato curioso se reflete nas diferenças entre os mundos
virtuais que os homens criam em comparação com as mulheres, segundo dados da
Replika: “Alguns usuários, principalmente homens, criam trios poliamorosos [NT:
relações em que casais buscam múltiplos relacionamentos românticos ou sexuais] ou
um harém de mulheres com IA. Outros usuários, sobretudo mulheres, mantêm
famílias nucleares: filhos, filhas, marido”.

Nunca será suficiente

Em 2018, a especialista do MIT, Sherry Turkle, escreveu um
artigo de opinião no The New York Times intitulado “Nunca haverá uma era
de intimidade artificial”.

Visto o que foi visto, parece que ele se enganou. Rob Brooks
destaca que a pandemia do coronavírus acelerou a transição para a intimidade
artificial. “Se você quer uma data para o início da era da intimidade
artificial, sugiro 2020”, afirma.

No entanto, talvez Turkle não estivesse tão errado. Assim como as redes sociais acabaram trazendo sentimento de insatisfação e cansaço, os amantes virtuais acabarão da mesma forma.

“As redes sociais não são substitutos perfeitos das relações
sociais. As intimidades artificiais do futuro serão substitutas imperfeitas do
companheirismo, da amizade, da intimidade, do sexo e do amor”, afirma Rob
Brooks.

E para o ser humano, a imperfeição de uma máquina pode valer
a pena por um tempo, mas não para sempre.

“Os robôs podem ser melhores do que nada, mas ainda assim não serão suficientes”, diz Turkle.

Copyright © 2023  Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol: https://www.aceprensa.com/ciencia/tecnologia/mi-novio-es-un-robot-el-auge-de-la-intimidad-artificial/

noticia por : Gazeta do Povo

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