No dia 21, a deputada Júlia Zanatta (PL-SC) recebeu reprimenda de um juiz de Florianópolis por ter, em 2023, postado foto nas redes sociais segurando uma carabina e uma camiseta com os dizeres “come and take it” – em inglês, “venha tomar” (a arma). A camiseta também estampava uma mão sem o dedo mínimo, representando uma das mãos do presidente Lula, atingida por três tiros.
No contexto de março de 2023, data em que a deputada postou a foto, o Brasil estava no auge dos debates parlamentares em torno de um decreto antiarmas que o presidente Lula tinha editado logo no primeiro dia de mandato. Discutiam-se medidas como impugnar judicialmente o texto ou sustá-lo por decreto legislativo. No texto que acompanhava a foto, a deputada prometia “impedir retrocessos” no direito ao armamento civil e falava em “socorrer empregos”.
As palavras em inglês na camiseta da deputada constituem uma frase folclórica da cultura americana, que tem até sua própria página na Wikipédia. Foi originalmente popularizada por seu uso na guerra de independência dos Estados Unidos, quando expressava recusa de se render diante de uma ameaça inglesa de tomar um forte. A frase foi depois reapropriada, transformada em mote para campanhas políticas pacíficas contra propostas governamentais de restringir o direito da população civil a possuir armas.
Acusação de “fascismo”
Nos Estados Unidos, a frase é associada principalmente à ideologia libertária, que prega a redução da intervenção do Estado em todos os âmbitos. Já no Brasil, o desconhecimento em torno do tema — similar ao enfrentado pela bandeira de Gadsden, outro símbolo libertário que é frequente alvo de incompreensão — fez com que a Justiça catarinense associasse a frase a uma ideologia oposta, o fascismo, que prega “tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado”.
“Uma das características mais preocupantes do fascismo é justamente promover uma cultura de violência contra os adversários”, lamentou o juiz do 2º Juizado Especial Cível de Florianópolis, a respeito da foto de Zanatta, ao proferir sentença.
O perigo mais saliente
Apesar do que diz o juiz, é duvidoso que o aspecto mais preocupante da conduta da deputada seja uma suposta promoção da violência armada.
Um aspecto mais saliente já existe como pressuposto do próprio pronunciamento do juiz: o fato de existir um processo.
Isso porque, apesar do comentário do juiz, o processo não era contra a deputada Júlia Zanatta, em razão da postagem. Ao contrário, era a própria deputada quem tinha movido o processo, pedindo indenização por danos morais de outra deputada catarinense, a petista Gleisi Hoffman, justamente por ter criticado a postagem — muito embora a Constituição preveja que deputados são protegidos pela imunidade parlamentar sobre “suas opiniões, palavras e votos”.
As pessoas — como a própria deputada Gleisi, na publicação alvo do processo — podem até se dizer, de forma performática, assustadas com a estética de Júlia Zanatta e suas figuras de linguagem, mas certamente não têm medo algum de serem alvejadas por um tiro da deputada. Certamente têm mais medo da ameaça de violência por parte do Estado, na forma de processos, cíveis ou criminais — um risco infinitamente mais realista.
E, nessa seara, quando se trata de indagar qual ideologia política mais envenena a sociedade “promovendo cultura” problemática, inclusive corroendo a imunidade parlamentar, não há dúvidas: não é o “fascismo” ou libertarismo, é o progressismo.
Exemplos podem ser encontrados na atuação da própria deputada Júlia Zanatta, mesmo sendo conservadora. E todos esses exemplos constituíram ameaça mais temível aos envolvidos do que a foto em que posou com arma.
“Discurso de ódio”
Na ação que moveu contra Gleisi Hoffmann, por exemplo, Zanatta se disse vítima de “discurso de ódio”. Trata-se de um conceito de matiz progressista, originalmente usado para invocar proteção a determinados grupos desprivilegiados na sociedade.
De origem estrangeira, o conceito se tornou, no Brasil, arma para cercear qualquer fala incômoda – inclusive quando dirigida a autoridades de elevada hierarquia social, justamente o oposto da intenção original.
Censura feminista
Em 2023, quando o jornalista Chico Pinheiro associou ao nazismo a tiara de flores usada por Zanatta, a deputada respondeu à acusação progressista com outra, acusando o jornalista de discriminá-la por ser mulher. Ameaçou invocar, contra o jornalista, uma lei censória feminista de 2021 que criminalizou “humilhar”, de forma discriminatória, deputadas mulheres, com a finalidade de dificultar “o desempenho de seu mandato eletivo”. Pena: reclusão, de um a quatro anos.
Trata-se do novo crime denominado “violência política contra a mulher” (que usou a palavra “violência” com hipérbole para designar meras falas, algo também típico do progressismo). A redação é vaga o suficiente para enquadrar qualquer crítica contra políticos numa democracia, desde que o político seja do sexo feminino.
Mais recentemente, a deputada afirmou que chegou a abrir inquérito criminal contra o petista Décio Lima, ex-prefeito de Blumenau, por essa mesma acusação. Também já ameaçou usar contra um crítico outro tipo penal influenciado pelo progressismo, o da “violência psicológica contra a mulher”.
A se julgar por comentários pretéritos da deputada, é possível que haja alguma ironia nas invocações que ela faz das ideias e tipos penais progressistas para processar os seus críticos, mas a ironia não torna menos reais as consequências.
O progressismo justifica o emprego da violência estatal
Seja pondo circulação conceitos novos, como “discurso de ódio”, seja ressignificando os antigos, como “violência política”, o progressismo está sempre em busca de mais justificações para que o monopólio estatal da violência seja usado contra palavras.
Tanto progressistas quanto conservadores têm suas próprias hipóteses em que consideram o uso da violência justificável. Uma diferença é que, ao contrário da crueza brutalista dos conservadores, os progressistas escamoteiam sua defesa da violência, porque são orientados por uma visão estética de mundo.
O que o caso da deputada Júlia Zanatta revela é que essa visão estética pode ir tão longe que a forma se torna a única coisa que importa. Assim, uma exibição de arma como mera figura de linguagem para algo não-violento (como na foto da deputada) causa choque e indignação. Enquanto isso, a violência em si (que é, no fim das contas, o que se pretende com qualquer intervenção do Estado) é velada com camadas de tecido cor-de-rosa e finge-se que ela é outra coisa.
Em sentido contrário, as meras palavras críticas de cidadãos contra políticas mulheres recebem novo rótulo e passam a ser chamadas de “violência”. Algumas vezes, rotular algo de “violência” é estratégia para fazer com que a violência literal usada em resposta passe a soar como uma equivalência.
Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais
noticia por : Gazeta do Povo