VARIEDADES

Introdução a um clássico cristão: “Confissões”, de Santo Agostinho

Se algum livro pode reivindicar ser o clássico cristão por excelência, deve ser as ‘Confissões’ de Santo Agostinho (354–430). Há outros candidatos ao título, com certeza. Podemos pensar em outra obra-prima de Agostinho, ‘A Cidade de Deus’, ou na ‘Summa Theologica’ de São Tomás de Aquino, ou talvez, se estivermos procurando algo mais leve, ‘A Imitação de Cristo’, de Tomás de Kempis, ou a ‘Filoteia – Introdução à Vida Devota’, de São Francisco de Sales. E se incluirmos obras de literatura, bem como obras de não-ficção, poderíamos sugerir ‘A Divina Comédia’, ‘O Peregrino’ ou mesmo, esticando a heterodoxia, ‘Paraíso Perdido’.

E quanto aos clássicos cristãos modernos, como ‘Ortodoxia’ e ‘O Homem Eterno’. de Chesterton, ou ‘Cristianismo Puro e Simples’ e ‘Cartas de um diabo a seu aprendiz’, de C. S. Lewis? Todos esses livros podem reivindicar ser clássicos cristãos (embora a teologia não trinitária de Milton estique a definição de “Cristianismo” até o ponto de ruptura), e todos eles valem muito a pena serem lidos. E, no entanto, se só pudéssemos ler um desses livros, ou se nos fosse permitido levar apenas um deles para a proverbial ilha deserta, realmente suportaríamos nos separar das ‘Confissões’? Poderíamos contemplar ficar longe dele? Realmente nos veríamos partindo para um lugar de solidão sem ele?

Além de ser um clássico puramente cristão, não há dúvida de que as ‘Confissões’ é um dos Grandes Livros, aqueles tomos seminais, tanto cristãos quanto não cristãos, que formam a própria base do cânone ocidental e que representam, coletivamente, os illustrissimi e eminenti de todas as obras publicadas. Ele se assenta confortavelmente ao lado das obras de Platão, Aristóteles e Aquino. E, no entanto, há algo nas ‘Confissões’ que o coloca em uma classe própria, mesmo em uma companhia tão prestigiosa.

As ‘Confissões’ é único. É diferente de todos os outros Grandes Livros. Contém filosofia, e ainda assim não é como qualquer outra obra filosófica. Enfrenta questões de teologia, mas não da mesma maneira que os teólogos normalmente fazem. É autobiográfico, mas não é meramente uma autobiografia; é, antes, o próprio arquétipo de toda autobiografia, o primeiro e o melhor do gênero, o padrão pelo qual toda autobiografia é medida.

Além disso, e talvez este seja o teste final, é sublimemente acessível e eternamente aplicável. Fala à nossa era, como falou à própria era de Agostinho, porque fala a todas as eras. Corta o jargão de todas as modas e manias intelectuais, aqueles acidentes da história (filosoficamente falando) que não participam das verdades que são verdadeiramente essenciais para a nossa compreensão de nós mesmos, dos outros e do nosso lugar no cosmos. Agostinho é acessível e aplicável porque ele é um de nós. Ele sofre das mesmas tentações e sucumbe a essas tentações. Ele cai e nem sempre se levanta de novo, preferindo se revolver na sarjeta com suas luxúrias e apetites ilícitos. E, no entanto, como nós, ele é inquieto até descansar na verdade, que só pode ser encontrada em Cristo e na Igreja que Ele fundou.

Ao contrário dos outros grandes filósofos, Agostinho não busca nas ‘Confissões’ nos mostrar a verdade puramente objetivamente, expondo os conceitos abstratos e provando seu ponto com raciocínio desapegado e lógico. Ele busca nos mostrar a verdade objetiva através do seu envolvimento subjetivo com ela e pelas consequências de seu fracasso em se envolver com ela. E, no entanto, essa abordagem subjetiva tem poder objetivo porque, ao se colocar em seus próprios sapatos, ele está se colocando em nossos sapatos também. Ao se descrever, ele está simultaneamente nos descrevendo. Ele e nós somos um. Compartilhamos a mesma humanidade com tudo o que isso implica. Ao vê-lo e suas lutas, vemos a nós mesmos e nossas próprias lutas, e as lutas uns dos outros.

A aplicabilidade eterna das ‘Confissões’ foi ilustrada de maneira contundente pelo Pe. David Meconi em sua caprichosa composição de uma carta que ele imagina que o Agostinho de dezessete anos poderia ter escrito para sua sofrida mãe (Santa Mônica) da faculdade. “Mãe, gostaria que você conhecesse minha nova namorada”, escreve Agostinho. “Viemos de lugares muito diferentes, mas ensinamos um ao outro algumas lições importantes. Estamos juntos há um ano ou mais agora, e quero que saiba que logo você conhecerá seu neto!” Ao apresentar os fatos autobiográficos da vida de Agostinho no idioma do século XXI, o Pe. Meconi nos permite ver algo de relevância duradoura na vida que Agostinho viveu e nas lições de vida que ele aprendeu, embora tenha vivido sua vida há dezesseis séculos. Talvez fôssemos o estudante universitário que decidiu “morar junto” com uma namorada. Talvez tenhamos engravidado uma namorada. Ou talvez fôssemos a mãe cujo filho ou filha universitário lançou a bomba sobre suas escolhas de estilo de vida. Plus ça change, plus c’est la même chose! Quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas.

Na mesma carta, o Pe. Meconi imagina Agostinho dizendo à sua mãe que pretende mudar de curso, de direito para filosofia, porque leu alguns bons livros e se pergunta se talvez haja algo ou alguém que atraia e mova as pessoas em direção à verdade. “Mas não sei”, acrescenta, “viver sem insistir na verdade é muito mais fácil.” Para o jovem Agostinho no século IV, assim como para o jovem estudante universitário no século XXI, o relativismo é uma escolha pragmática, um caminho de menor resistência intelectual que lhe permite satisfazer seus apetites inferiores sem fazer muitas perguntas morais incômodas. Plus ça change

A próxima bomba que o Pe. Meconi imagina o adolescente Agostinho lançar sobre sua devota mãe católica também é muito familiar. Ele informa que parou de frequentar a Igreja Católica e agora é seguidor de uma seita dualista nova era, que em seu tempo era conhecida como Maniqueísmo, mas em nossos dias recebe outros nomes. Plus ça change

Agostinho é “uma figura perene”, escreve o Pe. Meconi, “não diferente da maioria dos jovens de cada época.” Como os jovens de todas as épocas, Agostinho tem um “coração inquieto”, buscando prazer em todos os lugares errados. Ele é diferente de alguns, embora felizmente não de todos, em que finalmente encontrou descanso e verdadeira felicidade no único lugar onde pode realmente ser encontrado, na Presença de Deus.

Como o Pe. Meconi, também percebi uma semelhança impressionante entre meu próprio “coração inquieto”, quando jovem, e o coração inquieto de Agostinho, uma semelhança que é discutida na minha própria história de conversão, minhas próprias “confissões”, o livro ‘Race with the Devil: My Journey from Racial Hatred to Rational Love‘ [Correndo com o Diabo: Minha jornada do ódio racial ao amor racional] (Saint Benedict Press, 2013). Vou citar toda a passagem que conecta minha própria infância no século XX com a infância de Agostinho há dezesseis séculos, porque serve como um exemplo evocativo da acessibilidade e aplicabilidade das ‘Confissões’:

“O verão e o outono eram épocas de colheita, durante as quais descíamos como uma horda de bandidos ou piratas nos pomares vizinhos, saqueando ameixas, peras, maçãs e morangos à medida que cada fruta amadurecia, ou muitas vezes antes de amadurecer. As dores de estômago subsequentes eram atribuídas por minha mãe à quantidade glutona de frutas que consumíamos ou ao fato de que ainda não estavam maduras, mas imagino que também poderiam ser devido à ingestão dos produtos químicos nocivos que os agricultores na década de 1960 começavam a pulverizar em suas colheitas. Desnecessário dizer, comíamos enquanto colhíamos e nunca pensávamos em lavar a fruta antes de consumi-la.

“É estranho que ganhássemos tanto prazer com esse roubo das colheitas dos agricultores. Havia uma emoção em escalar a cerca para o pomar, em invadir a propriedade de outra pessoa, no risco de ser pego, na colheita do fruto proibido, em comê-lo. Na idade adulta, sou lembrado pela memória conduzida pela consciência de Santo Agostinho, narrada em suas ‘Confissões’, de sua própria expedição de colheita quando criança. Ele recorda “uma pereira carregada de frutas” perto de sua casa de infância e as invasões noturnas que ele e seus amigos faziam nela. “Pegamos enormes quantidades, não para nos banqueteamos, mas talvez para jogar para os porcos; comemos algumas, mas esse não era nosso motivo: derivávamos prazer do ato simplesmente porque era proibido.”

“As reflexões oportunas e atemporais de Santo Agostinho sobre a presença da concupiscência no coração da juventude servem para nos lembrar que a inocência da infância não é sinônimo da ausência de pecado. A arcádia em que residíamos não era o Éden. Embora vivêssemos em ignorância feliz da natureza e magnitude dos pecados adultos que nos cercavam, podíamos nos entregar às nossas próprias formas infantis deles e o fazíamos com um prazer diabólico. Como filhos de Adão, éramos aprendizes dispostos na arte antediluviana do pecado e nos tornávamos mais adeptos em sua prática à medida que envelhecíamos, mas não nos tornávamos mais sábios. É por isso que contos de fadas desempenham um papel tão saudável na infância. É necessário que as crianças saibam que o reino das fadas contém dragões, gigantes e bruxas malvadas, porque o mundo real contém versões adultas dessas criaturas malignas das quais as crianças precisam ter pelo menos uma noção.”

Além dos paralelos entre minha própria jornada “inquieta” pela floresta escura do pecado e do erro, e a de Agostinho, estou ciente de que minha própria narração da história é, em certo sentido, uma recontagem da história que ele já havia contado muito melhor. Todas essas “confissões”, todas essas histórias de conversão, são meros tipos do arquétipo de Agostinho. Até mesmo a ‘Apologia pro Vita Sua’ de John Henry Newman, talvez o maior memorando autobiográfico de conversão já escrito, exceto pelas próprias ‘Confissões’, é apenas um reflexo formal da “apologia” original de Agostinho. A desculpa do eminente vitoriano por sua vida apenas segue os passos veneráveis de Agostinho e o trilho confessional que ele já havia aberto. O mesmo poderia ser dito das ‘Confessions of a Convert’ [Confissões de um Convertido] do sacerdote católico Robert Hugh Benson, e de ‘A Spiritual Aeneid’ [Uma Eneida Espiritual] de Monsenhor Ronald Knox. Toda grande literatura confessional e todas as grandes histórias de conversão seguem a liderança e o exemplo da magistral obra original de Agostinho. Plus ça change

Este preâmbulo um tanto errante às ‘Confissões’ de Agostinho mal arranhou a superfície de tudo o que as ‘Confissões’ têm a oferecer. Não discutiu o engajamento filosófico e teológico de Agostinho com os neoplatonistas, ou com os maniqueístas; nem discutiu seu enfrentamento racional e psicológico com o luto e o significado da mortalidade; nem sequer mencionou o relacionamento de Agostinho com seu mentor, Santo Ambrósio. E, no entanto, quando tudo é dito e feito, a razão mais potente e importante para alguém ler as ‘Confissões’ são os insights que ele oferece sobre uma das maiores mentes da história. Por que não gostaríamos de passar tempo na companhia de um dos maiores homens que já viveu e na presença de uma das maiores mentes que Deus já amou?

Todos os aspectos multifacetados das ‘Confissões’ que não foram discutidos nesta breve introdução serão revelados nas maravilhosas confissões que se seguem. O que será revelado é verdadeiramente uma revelação no pleno entendimento epifânico da palavra. Não é nada menos do que o brilho de uma mente batizada na bem-aventurança da fé e da razão, e um coração banhado no amor de Deus, não mais inquieto porque está descansando Nele.

Joseph Pearce é colaborador sênior do The Imaginative Conservative. Natural da Inglaterra, o Sr. Pearce é professor visitante de literatura na Ave Maria University e pesquisador visitante do Thomas More College of Liberal Arts (Merrimack, New Hampshire). Ele é editor da St. Austin Review e editor da série Ignatius Critical Editions.

©2024 The Imaginative Conservative. Publicado com permissão. Original em inglês: Saint Augustine’s “Confessions”: An Introduction

noticia por : Gazeta do Povo

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