Houve um tempo em que a esquerda brasileira não pretendia ser politicamente correta.
Entre 1969 e 1991, o jornal O Pasquim reuniu alguns dos nomes mais importantes da vida cultural do país. A publicação era comandada por figuras como Ziraldo, Jaguar, Henfil, Sérgio Cabral (o pai) e Ivan Lessa.
Chico Buarque, por exemplo, assinou um artigo na edição de estreia, e depois outras dezenas — especialmente no exílio em Roma. Outros nomes como Caetano Veloso eram presença frequente nas páginas do jornal.
Ao mesmo tempo em que tinha o humor como carro-chefe, a publicação se notabilizou pelas longas e reveladoras entrevistas com figuras como Leila Diniz, Mané Garrincha, Luiz Carlos Prestes e Luiz Inácio Lula da Silva. Era um jornal da elite cultural da época, a ponto de ser citado na música “Coqueiro Verde”, de Erasmo Carlos.
Mas, para o bem ou para o mal, O Pasquim não sobreviveria à cultura do politicamente correto disseminada pela esquerda de hoje. Não só porque usava com liberalidade os termos mais recentemente incorporados à lista da censura progressista, como “criado-mudo”, “caixa-preta” e “buraco negro”: as páginas de O Pasquim trazem o que hoje seriam considerados episódios inaceitáveis de racismo, machismo e homofobia.
“Cabeça-de-negro”
O acervo de O Pasquim, que foi incorporado em 2021 à hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, tem 574 menções à palavra “crioulo”.
Em 1973, o jornal trouxe um passo-a-passo de como montar uma “cabeça-de-negro”. O nome se refere a um tipo de fogo de artifício usado em festas juninas; mas, se aproveitando do duplo sentido da expressão, O Pasquim exibiu uma sequência em que Luiz Rosa (espécie de faz-tudo do jornal) é envolto em papel e depois amarrado. O primeiro passo foi apresentado desta forma: “Pega-se um negro de bom tamanho”. As instruções eram ilustradas por fotografias em que o próprio Jaguar se encarrega de transformar Luiz Rosa no artefato junino.
Ao fim, a piada: “E explode?, perguntarão os eternos criadores de caso. Experimentem falar mal do Botafogo perto do Luiz Rosa pra ver se ele não explode.”
Chacota com as feministas
O auge de O Pasquim coincide com a ascensão do movimento feminista no Brasil. Mas, apesar da tendência à esquerda, os responsáveis pelo jornal não necessariamente viam a novidade com bons olhos. Além de rechear as edições do periódico com fotografias de mulheres em poses sugestivas, os responsáveis por O Pasquim faziam troça das feministas.
“A Gente aqui d’O Pasquim é toda pelo feminismo, desde que seus representantes sejam do nível de Tânia Caldas ou Marina Montini”, escreveu Pedro Ferretti em 1970. Tânia era atriz; Marina, modelo. Consta que Ferretti era um pseudônimo de Paulo Francis — que, registre-se, estava à direita dos colegas de jornal.
Mas este não era o caso de Jaguar, um notório apoiador de Leonel Brizola. Em 1982, comentando uma discordância entre Cora Rónai e Daniela Thomas, ele saiu-se com esta: “Mal contratamos duas mulheres, elas começaram a discutir entre si. E o motivo da discussão? Culinária. É por essas e outras que o movimento feminista no Brasil ainda não passou da fase de bate-boca na cozinha”.
Garota de 14 anos em pose sensual
A redação de O Pasquim não escondia o fato de que julgava as mulheres pela aparência. Durante anos, a publicação manteve uma coluna chamada “O Avião da Semana”, que apresentava uma fotografia de uma garota bonita com uma legenda humorística.
O problema: a sessão publicou fotografias de menores de idade. Em uma edição de 1985, a homenageada tinha 14 anos mas já estava “virando a cabeça de muitos brotos”, nas palavras do jornal. Logo adiante, outro trecho constrangedor: “O signo de Escorpião tem bossas que até a sexualidade mais desenvolvida desconhece”. Na foto, a garota aparece apenas com a parte de cima do biquíni e uma pequena canga na altura do quadril.
Os termos destinados a outras mulheres eram menos gentis. Ao noticiar a morte da escritora Louella O. Parsons, por exemplo, o jornal a descreveu como “gorda e feíssima”. Uma palavra cruzada publicada em 1976, assinada por Ziraldo, inclui uma “mulher gordona, feia, desajeitada (plural)”. A resposta, que tem cinco letras, não aparece na edição.
Elogio ao aiatolá
As páginas de O Pasquim também têm incontáveis referências jocosas aos homossexuais e transexuais. E, além dos negros, outros grupos raciais foram alvo de piadas no jornal.
Em 1974, uma charge fazia troça com as características físicas dos chineses: “Reconhecemos 900 milhões de chineses. Como, se são todos iguais”?
Outras derrapadas de O Pasquim têm a ver com as preferências políticas de seus articulistas.
Em 1979, Fausto Wolff saudou a Revolução Iraniana, que levou o aiatolá Khomeini ao poder e suprimiu violentamente as liberdades individuais. “A filosofia de Khomeini pode não ser muito otimista e está longe de ser avançadinha (…), mas é uma tentativa de recriar uma certa disciplina moral, pelo menos no Islã. Ele mesmo dá o exemplo com seu modo estoico de vida e sua força espiritual. E, finalmente, o povo do seu país está com ele!”, escreveu Wolff.
Na década de 1970, O Pasquim foi censurado pelo regime militar. Paradoxalmente, a redemocratização parece ter reduzido o interesse pela publicação. Com a reabertura, na década seguinte, o jornal foi gradualmente perdendo leitores até que foi vendido e fechou as portas definitivamente em 1991.
O Pasquim deixou sua marca no DNA da esquerda brasileira — especialmente à esquerda carioca. Mas é uma herança que os progressistas de hoje preferem esquecer.
noticia por : Gazeta do Povo