VARIEDADES

Hamas e outros grupos terroristas usam criptomoedas para burlar sanções financeiras internacionais

À medida que a guerra entre o grupo terrorista Hamas e Israel avança, cresce o questionamento sobre como organizações criminosas e terroristas têm acesso aos recursos necessários para financiar ações de tamanha magnitude. Uma das respostas que aparecem de forma recorrente é o uso das criptomoedas.

Assim como outros grupos terroristas, o Hamas aceitava abertamente doações de seus “simpatizantes” em carteiras de criptomoedas até abril deste ano, quando interrompeu a divulgação dessas práticas.

Ao deixar de anunciar as carteiras por meio das quais recebia as contribuições, o grupo justificou que a ação era necessária para salvaguardar seus colaboradores, que vinham sofrendo ameaças crescentes.

As ameaças a que se refere são as sanções impostas pelas regulações AML/CFT, a sigla em inglês para Anti-Money Laundering e Countering the Financing of Terrorism, respectivamente, Regulamentações Internacionais Contra Lavagem de Dinheiro e Combate ao Financiamento do Terrorismo.

As regras de AML/CFT têm sido implementadas por diversas nações em todo o mundo, principalmente pelos governos dos EUA e Israel. Além de congelar os ativos de grupos terroristas, usuários que fizeram doações ou transferências podem ter contas congeladas e serem investigados por suas ligações com as organizações criminosas.

Ainda que possa parecer simples, como congelar a conta bancária de um criminoso, a operação é bastante mais intrincada, pois precisa ser engendrada em dois níveis: nas redes de blockchain, onde não é possível congelar ou interferir nas transações, e no sistema financeiro convencional, quando os criptoativos, ao serem convertidos, podem ser bloqueados.

Anonimato e impossibilidade de congelamento nas redes blockchain 

“Em princípio, nas redes de blockchain públicas descentralizadas, como a do Bitcoin, por exemplo, não há a possibilidade de congelamento de ativos”, explica Pedro Magalhães, desenvolvedor especialista em Blockchain e cofundador da Iora Labs, empresa que faz verificação de contratos digitais.

“Por natureza, o algoritmo do bitcoin não pode ser impedido de nada, ele não pode ser congelado. Ele foi feito para não haver intermediários, como os bancos tradicionais, justamente para evitar qualquer tipo de congelamento e para não haver qualquer tipo de interferência externa”.

Nessas redes, as carteiras de cada usuário, similares a contas correntes, são especificadas por códigos ou chaves que não requerem quaisquer requisitos de identificação, ou seja, qualquer pessoa ou organização pode estar por trás de uma chave.

“Com os sistemas de blockchains públicas descentralizadas criou-se um sistema financeiro paralelo’, afirma Victor Valente, advogado especializado em tecnologia e presidente da Comissão de blockchain e cripto ativos da OAB de Niterói.

“Então, a partir do momento em que alguém entra em algum sistema blockchain, a pessoa consegue mandar criptomoedas de usuário para usuário sendo impossível que alguém barre qualquer ação”, disse.

Como o Hamas recebia os criptoativos 

A única forma de saber de quem é determinada chave é quando seu usuário a identifica, como acontecia com o Hamas ao divulgar suas chaves nas redes sociais e entre seus simpatizantes para conseguir doações.

“Eles [os grupos terroristas] dão uma carteira, como se você desse o seu endereço de e-mail. Dizem que estão recebendo doações nesse endereço e que as pessoas podem mandar diretamente para eles. Só que, ao contrário do e-mail, em que você usa o serviço de um provedor, na blockchain você usa a sua carteira para enviar diretamente para a outra carteira. Facilita todo tipo de transação”, explica Valente.

Histórico completo de transações na rede blockchain 

“Uma das características das redes blockchain é que todas as operações ficam registradas, como em um livro aberto a que todos os usuários da rede têm acesso”, afirma Magalhães.

Portanto, a partir da informação de que uma determinada carteira pertence a um grupo terrorista ou a alguém que os financie, empresas especializadas em análise de blockchain podem rastrear todas as transações realizadas por aquela chave.

Então, se por um lado, as chaves garantem o anonimato na blockchain, por outro, uma vez descobertas, tudo o que foi negociado e movimentado por meio das carteiras fica passível de rastreamento.

Identificação e congelamento: papel das Exchanges 

Ainda assim, enquanto estiverem nas redes de blockchain, esses ativos só podem ser negociados dentro da própria rede, ou seja, não podem ser usados no dia a dia, para aquisição de imóveis, investimentos em ações, dentre outros usos correntes.

Magalhães explica que os ativos que estão na rede blockchain só podem ser trazidos para o sistema financeiro convencional por meio dos bancos ou de Exchanges – empresas que fazem a conversão dos ativos digitais em financeiros tradicionais ou vice-versa.

Contudo, assim como qualquer outro cliente de bancos ou corretoras convencionais, os usuários das Exchanges precisam se identificar com dados básicos como nome, telefone, endereço. E é nesse ponto que as redes que financiam o terrorismo a partir do sistema financeiro tradicional podem ser reveladas.

Além disso, as Exchanges, assim como os bancos, estão sujeitas a legislações como a AML/CFT que podem levar ao congelamento de ativos se comprovada a ligação com atividades ilegais.

Então, ainda que não seja possível bloquear esses ativos na própria rede da blockchain, as Exchanges podem identificar as carteiras que são vinculadas ao crime e, dessa forma, podem congelar e impossibilitar suas transações.

Milhões de dólares em captações e doações 

Durante os doze meses que antecederam os ataques mais recentes a Israel, três grupos terroristas – o Hamas, a Jihad Islâmica Palestina (PIJ) e o Hezbollah – receberam grandes quantias de fundos por meio de criptografia, conforme primeiramente reportado pelo Wall Street Journal.

A Elliptic, uma empresa que pesquisa criptografias, descobriu que as carteiras de moeda digital vinculadas ao PIJ receberam até US$ 93 milhões [R$ 470 milhões] entre agosto de 2021 e junho deste ano. A análise foi feita com base em ordens de apreensão do governo israelense e em relatórios analíticos de blockchain.

Da mesma forma, averiguou-se que as carteiras conectadas ao Hamas receberam cerca de US$ 41 milhões [R$ 207 milhões] em um período semelhante, de acordo com uma pesquisa de outra empresa de análise e software de criptografia, a BitOK, com sede em Tel Aviv.

Tom Robinson, cofundador da Elliptic, afirmou que “o Hamas tem sido um dos usuários de criptografia mais bem-sucedidos para o financiamento do terrorismo”, conforme registrado pela agência internacional de notícias Reuters.

Pesquisadores da TRM Labs, outra empresa de análise de blockchain, disseram que a arrecadação via fundos criptográficos aumentava após ações terroristas do Hamas. Depois de ataques realizados em maio de 2021, por exemplo, a empresa identificou que carteiras ligadas ao grupo receberam mais de US$ 400 mil [R$ 2,025 milhões].

Entre dezembro de 2021 e abril deste ano, as autoridades de Israel apreenderam quase 190 contas criptográficas ligadas ao Hamas.

Limitações no rastreamento 

Mesmo que o histórico das transações nas redes de blockchain possam ser plenamente visualizadas, ainda há limitações no rastreamento do dinheiro depois que são feitas as conversões para moedas ou outros ativos correntes.

As empresas de rastreamento, por exemplo, não conseguiram determinar se os valores recebidos via criptografia pelo Hamas foram usados diretamente para financiar os ataques mais recentes do grupo terrorista a Israel.

Também não puderam determinar de forma precisa quanta criptografia as autoridades israelenses apreenderam das carteiras dos grupos. Os pesquisadores ainda disseram que os valores divulgados são apenas uma pequena parcela do montante total de fundos movimentados através das carteiras terroristas.

Um golpe para as criptomoedas? 

A aparente facilidade e o anonimato com que grupos terroristas e criminosos atuam nas redes de blockchain, e a inoperância das autoridades nesse ambiente podem suscitar críticas contra as criptomoedas.

Mesmo assim, Valente defende as redes de blockchain públicas descentralizadas. “Há organismos internacionais que se reúnem para falar disso e, alguns países, como a China, proíbem o uso de redes de blockchain – o que não significa que não sejam utilizadas, já que não há como rastrear as chaves geograficamente”, disse.

“O objetivo das redes de blockchain é a liberdade de transações, de evitar que forças muito centralizadoras impeçam que as pessoas tenham sua liberdade de transação. Mas eu acho importante fazer uma comparação com o sistema financeiro atual, onde esse tipo de transação [de financiamento ao crime e a grupos terroristas] continua acontecendo, em valores muito maiores, com financiamento que vem de outros países”, afirma.

Outras formas de financiamento do terrorismo 

Matthew Levitt, um antigo funcionário do governo dos EUA especializado em contraterrorismo, estimou que a maior parte do orçamento do Hamas, de mais de US$ 300 milhões [R$ 1,518 bilhão], veio de impostos sobre empresas, bem como de países que apoiam o grupo, como o Irã, ou de instituições que suportam sua causa.

Segundo o Departamento de Estado dos EUA, o Irã fornece até US$ 100 milhões [R$ 506 milhões] anualmente em apoio a grupos palestinos. O dinheiro seria movimentado através de empresas de fachada, transações marítimas e metais preciosos.

Em 2022, o Hamas teria estabelecido uma rede secreta de empresas que geriam US$ 500 milhões [R$ 2,531 bilhões] da Turquia até a Arábia Saudita. As empresas relacionadas a essa movimentação receberam sanções do Tesouro dos EUA em maio de 2022.

Valente ainda destaca que, nas transações realizadas via sistema financeiro tradicional, “há instituições intermediárias que tem o poder de barrar essas transações, mas tudo acontece, muitas vezes, de uma forma até mais escondida, já que não se consegue acompanhar todas as operações, do que seria na blockchain, onde todo esse histórico fica registrado sem poder ser deletado ou ocultado”.

noticia por : Gazeta do Povo

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