VARIEDADES

Governos começam a se rebelar contra tratado das pandemias da Organização Mundial da Saúde

Sob a direção do etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem tentado estabelecer há dois anos um tratado internacional de pandemias entre os países membros, para unificar a resposta ao próximo patógeno global. Mas na 77ª Assembleia Mundial da Saúde, realizada em Genebra na última semana de maio, a OMS fracassou em atingir um consenso a respeito dos termos do tratado. E agora alguns governos começaram iniciativas explicitamente contrárias ao acordo.

O diretor geral Ghebreyesus reclamou de uma “profusão de mentiras e teorias da conspiração” a respeito do tratado, rebatendo que a OMS não tem a autoridade de ditar políticas de saúde pública dentro dos países, e que não buscaria tal poder. Um dos motivos para as especulações é que boa parte das negociações aconteceram em sigilo.

Governos se rebelam contra os planos da OMS

Na semana seguinte (5), Kevin Stitt, governador do estado americano de Oklahoma, assinou a Lei Estadual 426, que diz que “a Organização Mundial da Saúde, as Nações Unidas e o Fórum Econômico Mundial não têm jurisdição neste estado” e que nenhum município, escola pública ou entidades quase públicas será “compelido a aplicar ou colaborar na aplicação de quaisquer exigências ou obrigações emitidas” pelas três entidades internacionais.

A peça legislativa detalha que Oklahoma não obedecerá “a quaisquer exigências” da OMS, “incluindo exigências de máscaras, vacinas ou testagem médica”, protegendo também dados dos cidadãos.

Outro governo que já está oficializando resistência à OMS é o de Javier Milei, na Argentina. Na segunda-feira (10), o porta-voz Manuel Adorni disse que “a Argentina não vai aderir ao acordo de pandemia da OMS comunicado em Genebra, onde deixamos claro que nosso país não se subscreve a nenhum acordo pandêmico que possa afetar a soberania nacional”, segundo o jornal Clarín. “Na Argentina, as decisões são tomadas pelos argentinos”, acrescentou Adorni.

A chanceler argentina, Diana Mondino, reforçou a mensagem na rede social X: “não permitiremos que um organismo internacional infrinja nossa soberania e muitíssimo menos para a volta dos confinamentos”. O atual presidente foi um grande crítico das medidas de confinamento decretadas pelo governo anterior, de Alberto Fernández. Milei defendia que a dicotomia apregoada entre saúde e economia era falsa.

Entre os americanos, também há resistência no governo federal, ao menos por parte do Partido Republicano. O deputado Brad Wenstrup, republicano de Ohio que chefia um subcomitê parlamentar que investiga as políticas da pandemia de Covid-19, se manifestou contra o tratado em fevereiro. “A pandemia nos mostrou que a OMS não é a instituição de saúde global proeminente que talvez tenha sido no passado”, disse. Também se manifestou contra o tratado o senador Marco Rubio, republicano da Flórida. Enquanto isso, o Departamento de Estado do governo Biden afirmou que “os Estados Unidos permanecem comprometidos com as negociações do acordo da pandemia”.

Na semana anterior à assembleia da OMS, o secretário de saúde e serviço social do Reino Unido, Andrew Stephenson, disse no parlamento que o país “sob nenhuma circunstância vai permitir que a OMS tenha o poder de impor lockdowns” e que “o texto atual é inaceitável para nós”.

Brasil colabora com o tratado

No lugar da ministra Nísia Trindade, que estaria ocupada com a emergência do Rio Grande do Sul, o Ministério da Saúde enviou como representante em Genebra o secretário Carlos Gadelha. Em pronunciamento perante os países membros da OMS, ele disse que “é inegável que a relação entre as mudanças climáticas e saúde tem de estar no coração da agenda da saúde pública”.

Gadelha disse que o governo Lula “tem feito grandes esforços para garantir o acesso universal” à saúde apregoado pelo tratado, com “mudanças radicais”. O secretário fez uma alusão crítica ao governo anterior de Jair Bolsonaro, dizendo que “voltou” o compromisso do Brasil com a ciência, a tecnologia e a produção local. Ele considerou que o principal desafio da Assembleia Mundial da Saúde é conseguir o acordo sobre pandemias (ou seja, o tratado).

“Reconstruiremos a ordem sanitária global após milhões de mortes ou esperaremos a próxima pandemia para chorar novamente?”, disse Gadelha. Ele afirmou que o Brasil atingiu níveis de cobertura vacinal de países desenvolvidos graças à produção local. A Fundação Oswaldo Cruz, por exemplo, produziu localmente a vacina da AstraZeneca contra Covid-19 (o Brasil demorou 600 dias a mais que o Reino Unido para parar de recomendá-la a menores de 40 anos). O exemplo brasileiro de transferência de tecnologia (um ponto do tratado, veja abaixo), contudo, “foi uma exceção global”.

O que diz o “rascunho zero” do tratado das pandemias

Foi em dezembro de 2021 que a OMS estabeleceu o Órgão de Negociação Intergovernamental para negociar e redigir o tratado. O órgão propôs, no “rascunho zero”, que o tratado seja “legalmente vinculante”, ou seja, que tenha status de lei para os países membros — um status não desfrutado sequer pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Uma petição lançada na época contra o acordo atingiu 123 mil assinaturas.

O “rascunho zero” do tratado, de fevereiro de 2023, diz que houve uma “falha catastrófica da comunidade internacional de mostrar solidariedade e equidade em resposta à pandemia da doença do coronavírus (Covid-19)”. O documento propõe princípios como “equidade” (“ausência de diferenças injustas, evitáveis e remediáveis” entre os países e dentro deles em grupos sociais, econômicos ou outros) e que as mulheres foram “impactadas desproporcionalmente” pela pandemia (mais homens morreram, contudo); e busca “reduzir substancialmente o risco de pandemias, aumentando capacidades de preparo e resposta, a realização progressiva da cobertura de saúde universal”.

O rascunho promete respeitar a soberania dos Estados e estabelece que eles têm de ser transparentes. Fora as propostas idealistas, o tratado estabeleceria uma Rede Global de Cadeia de Suprimento e Logística da OMS a ser sustentada pelos países membros em que eles determinariam “os tipos e tamanhos de produtos necessários para a prevenção pandêmica robusta, incluindo os custos e logística”. A rede mapearia fabricantes e fornecedores de insumos de saúde, “em especial ingredientes farmacêuticos ativos”. Soa como um mercado regulado e centralizado.

O tratado também pede por transferência de tecnologia entre os membros fora de períodos de pandemia e “renúncias temporárias de direitos de propriedade intelectual” de insumos durante tempos pandêmicos, além de um novo sistema de compartilhamento de informações genéticas dos patógenos (vírus, bactérias, protozoários etc.). A texto estabelece que a OMS tome 20% da produção de testes, tratamentos e vacinas: 10% das vacinas produzidas, por exemplo, em doações para países pobres e 10% a preço de custo para a organização distribuir nesses países. As imposições seriam diretamente sobre as farmacêuticas.

Há um chamado para os Estados “combaterem desinformações falsas e enganosas” e o acordo estabelece que os membros “contribuirão para políticas de pesquisa e informação sobre os fatores que atrapalham a aderência às medidas de saúde pública e sociais, a confiança e inoculação com as vacinas, o uso apropriado de tratamentos e a confiança na ciência e em instituições governamentais”.

“Não se trata de alguém dizendo ao governo de um país o que ele pode ou não fazer”, disse o codiretor do Órgão de Negociação Intergovernamental, Roland Drice, para a agência de notícias Associated Press.

Mas não foi possível alcançar um consenso na assembleia de 2024, ficando postergada para 2025 a próxima tentativa de promulgação do tratado das pandemias. O New York Times relatou “reuniões canceladas e debates contenciosos, às vezes por causa de uma única palavra” do texto.

“Donald Trump está na sala”, disse Lawrence Gostin, diretor do Centro de Direito em Saúde Global da OMS e um dos autores do rascunho. “Se Trump for eleito, provavelmente vai explodir as negociações e até sair da OMS”, afirmou. Na opinião de Gostin, “este é o momento mais importante da saúde global desde que a OMS foi fundada em 1948” e “seria uma tragédia imperdoável se deixarmos essa oportunidade escapar depois de todo o sofrimento da Covid”.

noticia por : Gazeta do Povo

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