As Notas da Comunidade, sistema de checagem do X (antigo
Twitter) baseado na contribuição de usuários da própria rede social, completarão
um ano de vigência no próximo dia 10, atraindo a crítica de algumas vozes na
imprensa brasileira, embora seja um sistema elogiado por grandes nomes
internacionais da programação. Presente em mais de 60 países — tendo chegado a
Israel e Palestina na semana passada (22) —, o serviço já corrigiu jornalistas,
governos, autoridades e o próprio dono do X, Elon Musk. Apesar de haver código
fonte e dados abertos, especialistas brasileiros alegam que falta
“certificação” e transparência no processo de checagem, já que o anonimato das
contribuições acabaria “gerando vulnerabilidades”.
Em entrevista ao jornal O
Globo no último dia 12, a jornalista Tai Nalon, diretora e cofundadora
da agência de checagem Aos Fatos, afirmou que o processo de admissão dos
contribuintes “não é claro” e o anonimato deles “acaba gerando
vulnerabilidades”. Nalon disse, ainda, que “não sabe se grupos políticos podem
organizar uma publicação e a aprovação das notas” e “não sabe como é balanceado
o algoritmo, quantos votos são necessários para que uma nota entre e saia do
ar”.
Já a advogada Iná Jost, membro da equipe do InternetLab,
cobrou “certificação” para os contribuidores, dizendo a O Globo que a
Wikipédia tem mais sucesso em exigir “fontes confiáveis” do que as Notas da
Comunidade. Jost disse também que a rede social passou a cobrar pelo acesso de
dados, mas a reportagem da Gazeta do Povo checou que qualquer pessoa com
uma conta no X, tendo ou não sido aprovada como contribuidora do programa de
checagem, pode baixar todo o arquivo de
notas, com mais de três gigabytes.
O InternetLab, que se define um “centro independente
de pesquisa interdisciplinar”,tem apenas uma especialista em computação
entre 26 pessoas envolvidas. Todas as outras são das humanidades, a maioria do
direito, inclusive os quatro diretores. O centro é financiado pela Fundação
Ford e pela Open Society, dois dos maiores financiadores de ativismo de
esquerda no mundo.
Sistema complexo
O X garante que não interfere nas notas, exceto se violarem
suas regras. Para ser aceito como contribuinte, um usuário deve dar número de
telefone, ter ao menos seis meses de presença na rede social e não ter violado
as regras recentemente. Ao entrar, um contribuidor não pode escrever notas, ele
deve antes acumular uma reputação após votar em notas escritas por outros — a
reputação é calculada pelo número de vezes em que ele teve sucesso em ajudar
uma nota a atingir consenso positivo ou negativo.
A rede social, portanto, não trata as Notas da Comunidade
como checagem, mas como adição de contexto a uma postagem, que depende de
consenso entre grupos de contribuintes. Esses consensos não são atingidos por
maioria de votos: com base em votos anteriores, o algoritmo, que é baseado em
um sistema de democracia digital de Taiwan, calcula a que coalizões pertencem
os indivíduos participantes daquela “checagem”.
Assim, se indivíduos que costumam
concordar demais em seus votos tentam em peso adicionar uma nota, o
consenso não é atingido pela falta de opinião de pessoas de outras coalizões. O
sistema de formação de consenso é explicado em detalhes
pelas Notas da Comunidade, mas exige alguma perícia em matemática e programação
para completo entendimento.
Quem entende, no entanto, parece tender a aprovar o programa.
“Na minha opinião, e na opinião de muitas pessoas de diferentes posições do
espectro político com quem eu falo, as notas, quando aparecem, são informativas
e valiosas”, disse há três meses em seu blog
Vitalik Buterin, programador russo-canadense que é cocriador da criptomoeda Ethereum.
Depois de explicar o algoritmo, ele opina que “a principal coisa que me
impressionou ao analisá-lo foi o quão complexo ele é”.
Anatomia de uma checagem de um tweet de Flávio Dino
Além de qualquer pessoa com uma conta no X poder baixar todo
o arquivo de notas, quem entende de programação pode, também, auditar a
qualquer momento todo o código do programa, que está disponível na plataforma
aberta GitHub,
pertencente à Microsoft.
Com o auxílio de um cientista de dados, a Gazeta do Povo examinou todas as cinco notas propostas pelos contribuidores para um tweet de 11 de setembro em que o ministro da Justiça, Flávio Dino, alegou que “fake news é crime, não é ‘piada’ ou instrumento legítimo de luta política”. Ele se referia a supostas declarações falsas a respeito das vítimas das chuvas no Rio Grande do Sul. Na ocasião, analistas estranharam que uma nota adicionada à publicação do ministro, que dizia “Ao contrário do que afirma o ministro, fake news não é crime no Brasil”, foi mais tarde removida.
A plataforma, porém, não garante que notas exibidas após
aprovação permanecerão no ar. O vocabulário do programa é explícito quanto à
possibilidade de revisão: “No momento, avaliada como útil” é o rótulo
que recebem as notas que foram aprovadas por consenso e estão no ar. O
contribuidor também fica sabendo quantas pessoas viram a nota e quais foram os
dois elogios (de uma lista pré-estabelecida) mais marcados por outros
contribuidores.
Uma nota de 1º de novembro
que corrigiu um tweet do portal Metrópoles e cita entre suas fontes a Gazeta
do Povo, por exemplo, foi elogiada pela maioria dos contribuidores de
diferentes perspectivas como “fácil de entender” e por citar “fontes de alta
qualidade”.
No caso da nota sobre as fake news, que foi
desafixada do tweet de Flávio Dino e deixou de ser visível para
não-contribuidores, os dados publicamente disponíveis para download mostram que
ela ainda existe. O usuário com o pseudônimo fixo “Creative Mango Emu” (algo
como “Ema Criativa de Manga”, dado automaticamente pelo programa no ato de
entrada, para manter em anonimato a conta real do contribuidor no X) a escreveu
quatro horas depois da postagem do ministro. Os outros contribuidores chegaram a
um consenso por sua utilidade cinco horas depois disso. A nota permaneceu no ar
por duas semanas, até o dia 25, quando foi reavaliada pelos contribuidores,
voltando ao status de “precisa de mais avaliações”, dado a todas as propostas
novas de notas e às notas que falham em atingir consenso.
Há diferentes mecanismos pelos quais um consenso
anteriormente atingido por uma nota pode ser perdido. O próprio checado pode
pedir, por
um formulário no X, para que a nota dada a um de seus posts seja
reavaliada. O ministro nega que tenha recorrido ao recurso para ter a nota em
seu tweet reavaliada.
A nota que perdeu consenso e saiu do ar citava como fonte
uma reportagem do G1, na qual um dos diretores do InternetLab,
Francisco Brito Cruz (doutor em direito pela USP), dizia que “criar e
compartilhar fake news, desinformação, não é um crime em si no Brasil”.
Outra situação mais dramática de nota removida após ter
atingido consenso foi analisada pelo programador russo-canadense Vitalik
Buterin. Um tweet oficial da ditadura de Xi Jinping, que dizia que “a China
rejeita todas as formas de islamofobia” e alegava que a liberdade de expressão
não se aplica a “atiçar conflito e jogar uma civilização contra a outra”,
recebeu uma Nota da Comunidade sobre a tentativa chinesa de genocídio contra a
minoria muçulmana dos uigures. “Há uma razão clara pela qual alguém poderia
suspeitar manipulação centralizada por trás da remoção da nota: Elon tem muitos
interesses de negócios com a China”, suspeitou o especialista.
Após análise como a realizada pela Gazeta do Povo no
caso Dino, ele concluiu que “não parece que houve intervenção centralizada”. “Felizmente,
o algoritmo tem código aberto e é verificável, então podemos olhar sob os
panos!” Buterin alertou, contudo, que a complexidade do algoritmo torna difícil
descartar a possibilidade de manipulação coordenada. “Se uma nota muda de
aceita para não aceita, deveria haver uma história simples e legível sobre as
razões para isso”, disse.
Há cinco notas no tweet de Dino, visíveis apenas para
contribuidores do programa e não para usuários comuns, sendo que quatro delas não
chegaram ao consenso. Já a quinta tem consenso de rejeição: um contribuidor
alegou que o tweet não precisava de nota de contexto adicional, porque “Flávio
Dino, além de ser professor em direito, também atuou como Juiz Federal, sendo
assim possui um notável saber jurídico”. Segundo essa falácia de apelo à
autoridade, portanto, ele não precisa de checagem quando fala sobre fake
news. Para os outros contribuidores, a nota é “inespecífica ou irrelevante”
e “opinião ou especulação”.
As alternativas são melhores que as Notas da Comunidade?
A Wikipédia, caso citado como mais positivo pelos
especialistas brasileiros, foi denunciada por viés político por seu cofundador
Larry Sanger. Em 2021, ele chegou a dizer que a enciclopédia se transformou em
“propaganda para o establishment de esquerda”. Casos como o trancamento de edições do artigo Gamergate,
permitindo apenas a interpretação progressista de uma polêmica envolvendo
ativistas identitários, jogos e o jornalismo especializado no tema na década
passada, ilustram a questão.
Os Twitter
Filesrevelaram que a moderação discricionária feita por
executivos da rede social, antes da compra de Elon Musk e a implementação das
notas, com frequência foi corrompida por atores políticos do governo americano,
sendo usada para a censura de informações verdadeiras por motivações como
evitar a “hesitação vacinal” e suprimir piadas sobre as eleições americanas.
Essa moderação, ao contrário das Notas, não tinha
transparência e era muito mais facilmente descarrilhada por interesses
políticos, como se viu na censura que os moderadores do Twitter fizeram contra
uma notícia verdadeira do jornal New York Post sobre o conteúdo de um
laptop do filho do então candidato à presidência Joe Biden. “Laboratórios” de
Internet em Stanford e em think tanks participaram da implementação da
censura a pedido de agências estatais, interferindo
nas eleições presidenciais de 2020 nos Estados Unidos. O caso deve ser
ouvido pela Suprema Corte americana no próximo ano.
Quanto às agências de checagem, mais uma vez o principal problema é o viés político. Em 2021, como contou a colunista da Gazeta do Povo Madeleine Lacsko, a Agência Lupa manchou sua imagem dando espaço para falsas etimologias de supostas expressões “racistas” de uma organização de ativismo identitário de raça. A própria agência Aos Fatos e sua diretora Tai Nalon foram condenadas a indenizar o Jornal da Cidade Online por alegarem que ele integrava uma “rede de desinformação” junto a um site que homenageava um torturador da Ditadura Militar. A condenação foi mantida em acórdão unânime pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em junho passado.
A reportagem contou com o auxílio técnico do cientista de dados Matheus Souza.
noticia por : Gazeta do Povo