“A gente precisa fazer uma humilde paradinha e prestar atenção no público. Quem vai ao cinema no Brasil? Temos milhões de espectadores em potencial que pararam de ir, talvez porque não se reconheceram na tela, porque sentaram na sala e viram uma coisa que não entenderam, que não fazia parte do universo deles. Tem alguma coisa nos afastando do público.”
A declaração acima poderia ser de um jovem artista ainda em
busca de audiência. Mas foi dada há alguns dias, ao jornal O Globo, por
um astro consagrado, que não precisa mais provar nada para ninguém: Antonio
Fagundes.
O assunto da pauta era “Maldito Benefício”, filme estrelado e produzido por Fagundes com recursos 100% próprios – o mesmo expediente adotado por ele em sua produtora de teatro desde a década de 1970. “Estou correndo um risco monstruoso. Mas ao menos estou tentando trazer para o cinema um modelo onde o risco existe”, disse, à reportagem do diário carioca, o ator de 74 anos (que já fez campanhas para o PT e hoje alega “ter sido muito usado”).
Obviamente, Antonio Fagundes é um nome consolidado e tem um caminho muito mais fácil para trilhar na produção cultural se comparado às dificuldades de quem está começando ou não tem sua notoriedade. No entanto, correr riscos e olhar mais para o público são práticas que, definitivamente, não fazem parte dos hábitos da classe artística brasileira.
E, a julgar pelo balanço do setor no primeiro ano da gestão Lula 3, continuarão não fazendo. Segundo dados do Ministério da Cultura, o governo aprovou em 2023 a liberação de R$ 16,3 bilhões para projetos por meio da Lei Rouanet. Ou seja, via renúncia fiscal (dinheiro abatido do imposto de renda das empresas que patrocinam filmes, peças, exposições, shows, etc.).
Não se trata, portanto, de um investimento direto por parte da administração da federal, como muita gente ainda não entendeu (ou finge não entender). De qualquer forma, é um valor maior do que o disponibilizado durante todo o mandato de Jair Bolsonaro na Presidência da República – e extremamente alto para uma gestão em busca de mais receita e sempre disposta a aumentar impostos.
Para os críticos das leis de incentivo à cultura, ou pelo menos da aplicação distorcida delas, os governos podem se utilizar desses mecanismos para impor sua ideologia, beneficiar apoiadores e cooptar o setor (o que pode acomodar, criativamente falando, a categoria).
Coincidência ou não, desde o início do ano não se vê mais
artistas engajados em qualquer tipo de campanha que possa ameaçar a nova era
petista no poder. Nem com as queimadas na Amazônia a classe se preocupa mais.
Mas, com ou sem dinheiro público envolvido, a resposta “das ruas” tem sido bem clara. Não são poucas as notícias sobre filmes que fracassam nas bilheterias, novelas com audiência medíocre e shows musicais cancelados em cima da hora por falta de pagantes.
Nesta semana mesmo, segundo o site de notícias Metrópoles, a produção da cantora Ivete Sangalo se viu obrigada a distribuir, gratuitamente, cerca de 30 mil ingressos na tentativa de ocupar o Maracanã no evento comemorativo de seus 30 anos de carreira, realizado na última quarta-feira (20).
Estamos falando, é claro, de produtos da indústria cultural, que contam com divulgação maciça e altos investimentos. Dito isso, retornamos ao questionamento de Antonio Fagundes: o que tem afastado os artistas das plateias?
Polarização política e identitarismo estão entre as causas do desinteresse do público
Jornalista cultural há mais de 30 anos, e conhecido por suas
(hoje extintas) colunas na Folha de S. Paulo e no portal UOL,
Ricardo Feltrin acredita que a polarização política é um elemento crucial para
compreender este momento da cultura e do show business no Brasil. “Não
tem como fugir disso. O público realmente está rachado”, afirma.
Feltrin cita o caso de Lulu Santos, que há cinco anos lotaria qualquer espaço do Brasil onde se apresentasse – e teve um show desmarcado em Criciúma (SC), no mês passado, devido à baixa procura dos ingressos. “Ele declarou apoio ao Lula nas últimas eleições e, evidentemente, passou a ser repudiado por quem votou no Bolsonaro.”
O jornalista ainda menciona uma situação inversa, envolvendo
a cantora Claudia Leitte, recentemente acusada de plágio. “Quem entende mesmo
de música viu que a faixa não era uma cópia, no sentido técnico da composição.
Mas, pelo fato de a artista ser bolsonarista, a imprensa de esquerda a condenou
sem sequer checar. Quiseram destruir a carreira dela”, diz Feltrin, que no
momento atua no próprio site e em um canal do YouTube.
Questionado sobre o cenário da música sertaneja – distante de qualquer crise, porém associado ao agronegócio e ao conservadorismo –, Feltrin lembra que, apesar do apoio de muitos cantores e duplas ao ex-presidente Jair Bolsonaro, a grande maioria das estrelas do gênero não se envolve com política. “Talvez isso ajude a manter o sucesso do sertanejo há tantos anos.”
“Até pouco tempo, você não sabia as preferências políticas dos outros artistas. Hoje, ao contrário, há uma espécie de cobrança social, que parte de dentro da classe, para que as pessoas se posicionem”, afirma o ator, roteirista e quadrinista Felipe Folgosi, mais conhecido do grande público por suas participações em novelas da Globo, Record e SBT.
Ele conta que passou a ser segregado pelos próprios colegas quando, em 2018, anunciou que não votaria em Fernando Haddad para presidente. “Graças a Deus, eu já vinha, há anos, desenvolvendo outros trabalhos e me tornei financeiramente mais independente”, diz o ator, que em 2023 emplacou dois projetos bem-sucedidos como roteirista – o filme “Rodeio Rock” e a HQ infantil “Lambo”.
Tanto Feltrin quanto Folgosi também apontam a cultura woke
como “culpada” do desinteresse do público. “A Globo, por exemplo, virou a
versão nacional da Disney. Há uma overdose de identitarismo em toda a
programação. A própria Disney já ligou o alerta com relação a isso, depois de
vários fracassos seguidos de bilheteria. O CEO deles [Bob Iger], dias atrás,
pediu: ‘menos mensagem, mais entretenimento’”, afirma o jornalista.
Para Felipe Folgosi, “saturação” é a palavra que define o
sentimento da audiência atualmente. “As histórias não tratam mais do que é
universal, da condição humana, do que emociona. Só seguem a agenda de uma elite
cultural que fala do alto de uma torre de marfim. Mas as pessoas não são idiotas,
estão cansadas de receber lição de moral até de comerciais de barbeador”, diz.
Segundo o ator, quem participa de editais de leis de incentivo
deve estar em conformidade com esse discurso. “A temática já é dada
previamente. E, no fim das contas, apenas quem é amigo do rei acaba sendo
beneficiado.”
Sobre a Rouanet e outros mecanismos de fomento, Feltrin completa: “Mais de 90% dos recursos vai praticamente para o mesmo grupo. Vai para gente como a Paula Lavigne [mulher e empresária de Caetano Veloso], a Ivete Sangalo. Esse pessoal que tem escritório só para cuidar disso.”
“Bolhas” da internet estão desconectando os artistas da realidade
No entanto, nem tudo tem a ver com política quando se trata
da desconexão dos artistas com a realidade. A internet, que inicialmente estreitou
a relação entre as duas pontas dessa cadeia, hoje confina as pessoas em bolhas
e pode levar quem tem milhares de seguidores a crer que o sucesso digital também
é presencial.
Vide a cantora pop Luísa Sonza, figurinha carimbada dos trend topics brasileiros, mas que tem enfrentado dificuldades em sua nova turnê – especialmente fora dos grandes centros. Em novembro, Sonza amargou dois reveses na Paraíba.
Na capital João Pessoa, os organizadores atrasaram seu show em quase duas horas na esperança de receber mais público. Porém, apenas cerca de 5% dos ingressos foram vendidos, e os contratantes tiveram de arcar com um prejuízo de R$ 300 mil. Já em Campina Grande, a apresentação sequer aconteceu. Devido à baixa procura, o evento foi cancelado e o dinheiro, devolvido aos poucos pagantes.
“Muitos artistas hoje são famosos apenas como influencers”,
afirma Ricardo Feltrin. “Veja o caso da Paolla Oliveira. Todo dia saem mais de
dez matérias sobre ela em sites fúteis, que falam das curvas dela, do bronzeado
dela. Mas ninguém sabe em que novela ela está atualmente, que papel faz.”
Na opinião de Felipe Folgosi, a internet não é o espaço
livre e democrático que parecia ser quando se popularizou, a partir do final
dos anos 1990. “No início da minha carreira, eu sempre era ‘filtrado’ por quem
publicava minhas entrevistas. Depois, com as redes sociais, passei a controlar minhas
declarações, a ser meu próprio editor. O problema é que as plataformas também
são controladas, e os algoritmos podem te censurar.”
O ator revela que já sofreu shadowban, uma espécie de
bloqueio parcial causado pela suposta violação dos termos de uso das redes sociais.
Personalidades conservadoras costumam se queixar dessa prática, que torna suas
contas menos visíveis nas pesquisas e recomendações de conteúdo – graças a
denúncias falsas feitas por internautas progressistas, para quem qualquer
opinião de direita é sinônimo de discurso de ódio.
Para Feltrin, a era do streaming trouxe consigo uma
imensa oferta de conteúdo, que acabou fragmentando ainda mais a produção nacional.
E o resultado dessa diluição, associada à falta de criatividade, é a ausência
de novos ídolos e movimentos.
“Mesmo o sertanejo universitário, que tem apelo de massa, já domina o mercado há mais de uma década, não é uma novidade. Aí eu pergunto: qual foi o grande grupo ou cantor surgido nos últimos dez anos? Qual foi o grande seriado ou filme brasileiro lançado dos últimos dez anos? Mesmo as novelas de maior audiência são remakes. Não vejo saída para essa crise, para mim é um caminho sem volta”, afirma.
A reportagem da Gazeta do Povo entrou em contato com a Fafá Cultural, produtora de Antonio Fagundes, para solicitar uma entrevista com o ator – mas não obteve retorno até a conclusão deste texto.
noticia por : Gazeta do Povo