VARIEDADES

É errado afirmar que prescrição precoce de hidroxicloroquina matou 17 mil no mundo

No começo do ano (2), um estudo
publicado na revista Biomedicine & Pharmacotherapy por pesquisadores
da Universidade de Lyon, na França, e da Universidade Laval, no Canadá, afirmou
que a prescrição do medicamento hidroxicloroquina (HCQ) contra a Covid-19 “foi
associada a um aumento de 11% da mortalidade” dos pacientes, com um total de 17
mil mortes. Nelson Teich, oncologista que foi Ministro da Saúde por um mês em
2020, reagiu ao estudo no X, dizendo que “o tempo mostrou que a minha decisão
de me posicionar contra a liberação e recomendação da cloroquina foi correta”. A
HCQ é uma forma menos tóxica da cloroquina, mas o ex-ministro se referia a
ambas.

Grande parte da imprensa reagiu de forma similar: “Uso de
hidroxicloroquina durante pandemia de Covid causou 17 mil mortes em seis
países”, afirmou o jornal O Estado de S. Paulo. “Cloroquina contra Covid matou
quase 17 mil pessoas”, noticiou a Carta Capital. “Cloroquina matou 17 mil pessoas na primeira onda
da covid, diz estudo”, alegou o UOL Notícias. Há um problema: não é
verdade.

A afirmação de relação causal entre a droga e as mortes não
foi estabelecida pelo estudo, como ele próprio deixa claro em seu texto, com linguagem
mais cautelosa: “a principal descoberta do presente estudo é que a HCQ poderia
ter sido associada a um excesso de 16990 mortes durante a primeira onda da
pandemia de Covid-19 nos seis países para os quais dados estavam disponíveis”,
disseram os autores, em sua seção de discussão. Contudo, eles próprios, nos
títulos do estudo e de duas tabelas, sugerem inadequadamente relação causal com
o termo “mortes induzidas por” HCQ.

O estudo “não traz qualquer informação nova sobre o efeito
da hidroxicloroquina sobre mortalidade em pacientes de Covid”, explica Daniel
Victor Tausk, professor associado do Instituto de Matemática e Estatística da
Universidade de São Paulo (USP). “Simplesmente porque não é um estudo sobre o
efeito da HCQ em pacientes da Covid de qualquer tipo”. Os pesquisadores franceses
e canadenses fizeram uma revisão de literatura com mérito de dar uma nova
estimativa da mortalidade de pacientes hospitalizados.

Tausk tem analisado por contra própria os efeitos das drogas
propostas para tratamento precoce no começo da pandemia, fazendo simulações de
computador compartilhadas com a Gazeta do Povo que mostram que uma droga
com eficácia de 20 a 30% contra Covid produziria resultados idênticos aos
usados por muitos como “prova de ineficácia” contra HCQ. Ou seja, é provável
que as drogas de tratamento precoce tenham ajudado, como sugerem os dados
consultados pelo especialista, mesmo que não tenham atingido sempre os limiares
de teste estatístico exigidos nos estudos de maior rigor conhecidos como
“ensaios controlados e randomizados”, em que os pacientes são distribuídos para
um grupo que tomou o tratamento, a ser comparado com outro grupo que não tomou
(chamado “grupo controle”) e (o que nem sempre é incluso) um terceiro grupo que
tomou um falso tratamento sabidamente sem efeito (o famoso “placebo”).

“A estimativa das mortes que teriam sido causadas pela hidroxicloroquina vem de uma conta de quarta série em que aqueles 11% de aumento de mortalidade já encontrados no estudo antigo são tomados como fatos”, critica o especialista. O estudo antigo, publicado na revista Nature, é bom, segundo Tausk, “mas não dá nenhuma informação sobre o que chamávamos de ‘tratamento precoce’”. A esmagadora maioria dos dados levados em conta pelo estudo antigo e o novo vem de dois ensaios clínicos em que a HCQ foi dada em doses altas para pacientes hospitalizados — se já eram hospitalizados, não se pode falar em tratamento precoce.

O peso total dado a pacientes ambulatoriais, que se
encaixariam na definição de tratamento precoce, “foi de apenas 0,2%”. Isso não
significa que houve má fé dos pesquisadores, esclarece o matemático, mas que há
um problema no critério de inclusão dos dados, especialmente ao serem usados
como se mostrassem que a prescrição precoce matou alguém. Na verdade, permanece
de pé uma revisão de estudos coberta pela Gazeta do Povo que indicou
que, se tomada antes da infecção, a
HCQ pode ter ajudado
.

A estimativa de 17 mil mortes em seis países é correta? “Isso depende de saber se os hospitais da vida real estavam usando as doses altas usadas nos ensaios em pacientes graves. Se não estavam, a estimativa encontrada no novo estudo não vale nada”, assevera Tausk. Em outras palavras, o número é uma extrapolação baseada em uma dose alta de HCQ usada em dois estudos com pacientes internados, e não há levantamentos de que essas doses tenham sido aplicadas de forma generalizada, especialmente em pacientes em estado mais grave. Se o incremento de 11% indica alguma relação causal em mortes, é da dose alta de HCQ em pacientes graves e já fragilizados, o que não representa a maioria dos casos de prescrição de HCQ na época.

Algo similar ao excesso de dose nos ensaios com HCQ foi feito com a cloroquina em um estudo de Manaus conduzido pelo infectologista Marcus Lacerda, no começo de 2020. O pesquisador, ligado à Fiocruz Amazônia, incluiu quase 100 pacientes em estado grave com Covid, pretendendo testar se a droga os ajudaria. Seis pesquisadores brasileiros denunciaram à revista em que o estudo foi publicado que Lacerda e colegas haviam dobrado acidentalmente a dose de cloroquina recomendada em suas próprias fontes. Dos pacientes incluídos no estudo, 22 morreram. Em julho de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva concedeu uma medalha de “mérito científico” a Lacerda.

noticia por : Gazeta do Povo

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