VARIEDADES

Dogma acima da ciência: como alguns tentam vetar debate sobre vacinas da Covid

Um artigo publicado em novembro de 2023 no periódico Irish
Journal of Medical Science
acusa a Gazeta do Povo de publicar um
suposto exemplo de “desinformação científica”. O autor, Heslley Machado Silva, professor
de biologia afiliado ao Centro Universitário de Formiga (UNIFOR) e à
Universidade Estadual de Minas Gerais, evita acusações diretas ao jornal, mas
lista como único exemplo de suposta desinformação uma reportagem de 8 de novembro
de 2022, “Dose
de reforço pode aumentar risco de reinfecção com Covid, conclui novo estudo
”.

Silva, que recomendava que seus estudantes “evitem sites
pouco confiáveis e rejeitem a pseudociência nas redes sociais”, e que em vez
disso busquem “a imprensa respeitável que use como base a literatura
científica”, relata que teve que repensar seu conselho quando um ex-estudante
“ciente da minha posição a favor da vacinação” lhe recomendou a reportagem.
Após dizer por que motivos o texto lhe desagradou, ele escreveu que “fake news
são um problema sério no Brasil” e lista como subordinado a este o problema dos
“negacionistas quanto à eficácia das vacinas, a historicidade do Holocausto e a
esfericidade da Terra”.

O professor diz que
o título da matéria representaria mal o artigo de referência, que “não tira
essa conclusão”. Contudo, o estudo, de autoria de cientistas do Catar, país que
produziu os melhores artigos de comparação da imunidade natural com a vacinal, diz em
suas conclusões resumidas
que “o histórico de vacinação de reforço
comprometeu a proteção contra a reinfecção com a Ômicron”, variante da Covid-19
hoje dominante. A reportagem tratou da publicação uma semana após ter aparecido
na base de artigos MedRXiv, que lista entre instituições que a apoiam o
Laboratório Cold Spring Harbor (muito respeitado em biologia molecular), o
grupo de publicação científica British Medical Journal (BMJ) e a
Universidade Yale.

Hipótese científica séria em análise, não “desinformação”

Como o biólogo reconhece, a Gazeta do Povo deixou
claro para seus leitores, já no primeiro parágrafo, que a MedRXiv é “um banco
de artigos esperando análise de revistas especializadas” — ou seja,
pré-publicações ou “preprints”. Mas Silva não ficou satisfeito: “eu me
pergunto quantos de seus leitores sabem o que isso significa”, diz no artigo.
“E, é claro, muitos podem ter lido apenas o título enganoso”, insiste.

Desde a reportagem, a hipótese do problema descrito pela
pré-publicação, chamado “imprinting imunológico”, continuou a ser
tratada a sério por cientistas. No imprinting, a proteção que o sistema
imunológico cria para determinada variante de um patógeno pode atrapalhar, em
vez de ajudar, na proteção contra novas variantes. O fenômeno também é uma
possível explicação para o decaimento da proteção vacinal conforme mais doses
são administradas.

Há, inclusive, artigos publicados que passaram pela revisão
por pares, ou seja, que não são “apenas uma pré-publicação” (como Silva coloca).
Por exemplo, uma revisão da revista Nature
Microbiology
publicada um ano após a reportagem, com primeira
autoria de Chloe Qingzhou Huang, da Universidade de Cambridge, comenta que é
“marcante” que um estudo de uma dose bivalente atualizada da vacina de mRNA da
Moderna para a subvariante BA.1 “relatou um aumento da incidência numérica de
infecção no grupo bivalente”. O estudo de Huang deixa claro que há um cenário
complexo de diferentes formas de imprinting imunológico.

Como toda hipótese científica ainda sendo explorada, a
apresentada pela reportagem tem evidências contrárias a ela e pode ser falsa —
mas todo um debate científico deve acontecer antes que essa conclusão possa ser
apresentada com firmeza. Outro artigo publicado em
junho de 2023 na BMJ, com primeira autoria da epidemiologista espanhola Susana
Monge, lista como fato que “estudos observacionais acharam um risco maior de
reinfecção com a variante Ômicron em pessoas que receberam a terceira dose de
reforço da [vacina da] Covid-19”, mas oferece uma explicação alternativa para o
fenômeno, uma espécie de acidente estatístico. Durante esse processo de exploração,
rotular uma hipótese como “desinformação” é no mínimo precipitado e tem o
potencial de atrapalhar o debate e a comparação de indícios.

Heslley Silva diz em seu artigo que entrou em contato com “o
editor do jornal”, mas os editores da seção Ideias, onde a reportagem foi
publicada, não encontraram sua mensagem nos meios institucionais de
comunicação. Na verdade, ele falou em particular, no WhatsApp, com um editor da
área de opinião, e representou de forma demasiado econômica em seu artigo as
explicações desse profissional em defesa da reportagem. Em resposta à
preocupação de Silva que a reportagem fosse induzir hesitação vacinal quanto à
terceira dose, por exemplo, o editor apontou um trecho em que a Gazeta do
Povo
explicou que “os cientistas envolvidos no estudo pensam que suas
descobertas não prejudicam os potenciais benefícios da terceira dose, ao menos
no curto prazo, para o público”. O editor também apontou que a reportagem
explicou o que era uma pré-publicação científica logo no início.

Heslley responde

A Gazeta do Povo tomou a iniciativa de entrar em contato com o autor do artigo acadêmico para que ele tivesse a oportunidade de esclarecer suas posições e antecipar sua tréplica. Por e-mail, Silva disse, em resposta a alguns dos argumentos acima, que o autor da reportagem (e deste artigo de opinião) “é, de fato, negacionista e apoia fortemente o movimento antivacina”, ignorando artigos em que o autor critica esse movimento, como uma resenha elogiosa ao documentário “A Conspiração Antivacina” (HBO), de novembro de 2021. A acusação, portanto, é falsa. Quanto à comparação com a negação do Holocausto, ele manifestou a esperança “que você nunca tenha escrito nada nessa linha”.

Na resposta, o biólogo mostrou incompreensão do trabalho
jornalístico, ao chamar de “reportagem” um artigo de opinião do colunista Paulo
Polzonoff, que criticava a errônea e autoritária obrigatoriedade da vacina
contra Covid imposta pelo Ministério da Saúde às crianças. Silva alegou que a
chamada do colunista foi “irresponsável” e “uma tragédia de desinformação”. O
acadêmico também reclamou de outras reportagens, como uma que noticiou que Paul
Offit, famoso especialista em vacinas que já chegou a participar da produção de
uma delas, disse que não
tomaria mais doses de reforço
, alegando que ele seria uma “exceção no meio
acadêmico”, sem dar referências disso. Outras reportagens das quais ele
reclamou têm como fontes publicações acadêmicas revistas por pares e as
agências estatais de saúde americanas CDC e FDA. Offit, a propósito, é membro
do Comitê Consultivo de Vacinas e Produtos Biológicos Relacionados da FDA
(Administração de Alimentos e Drogas).

Silva também errou em resposta à reportagem ao alegar que a cloroquina “levou a um aumento das mortes na pandemia”, alegação de manchetes na imprensa brasileira desmentida por especialistas. A propósito, diferente do que ele disse no artigo acadêmico, o formato do planeta Terra não é uma esfera, mas um geoide. Pode parecer uma distinção pedante, porém, tem implicações para o bom funcionamento dos mapas que usamos diariamente nos nossos celulares e para missões espaciais.

A revista que publicou o artigo, Irish Journal of Medical Science, ocupa a 1.338ª posição entre 2.499 revistas de medicina geral no ranking da empresa Scimago, especializada em análise de impacto científico. Silva preferiu citar a posição da revista o ranking brasileiro Qualis, praticamente ignorado no exterior.

Quanto à questão do imprinting imunológico, Silva
disse que não teve tempo para se aprofundar no texto da revista Nature Microbiology,
mas rebateu que “extrair uma referência de uma revisão não prova nada”. Ele
concluiu sua resposta acusando a Gazeta do Povo de “prestar um
desserviço à saúde pública brasileira”.

Acusações destemperadas evidenciam dogmatização

Em artigo na revista The Scientist em setembro de
2021, o biólogo molecular e executivo de farmacêutica Ahmed Alkhateeb analisou
o caso do famoso bate-boca entre Anthony Fauci, chefe da resposta à pandemia
nos governos Trump e Biden, e o senador e médico Rand Paul. Ele apontou que
ambos tinham razão em diferentes pontos na época, e reclamou que “não foi um
debate entre um lado pró-ciência e um lado anticência, como foi apresentado
pela imprensa”. Pelo contrário, continuou Alkhateeb, “foi um debate científico
sobre políticas diante de uma incerteza inerente”.

“Nós, enquanto sociedade, precisamos aprender a ter
discussões construtivas e baseadas em evidências”, aconselhou o executivo. Não
é o que acontece quando um biólogo acusa falsamente um jornalista (que por
acaso também é biólogo) de “apoiar fortemente” o movimento antivacina,
associado a horrores como a aplicação de enemas de água sanitária em crianças
autistas. O que fica transparente é que o acusador está inflamado de paixão
tribal política, não inspirado pela curiosidade científica.

Como se lê em livros de grandes autores científicos para o
grande público como Carl Sagan, Richard Dawkins, Carl Zimmer e Kevin Mitchell,
a curiosidade é calma, especulativa, detalhista, audaz, provocativa. Ela não
perde tempo com disputas tribais. A curiosidade não tem tribo e, se fosse uma
pessoa, rapidamente seria acusada de traição. A mente humana é cheia de
defeitos de fábrica e tribo nenhuma, baseada em crenças políticas disfarçadas
de científicas ou outras, tem o monopólio da verdade.

Como disse o biólogo molecular Alex Washburne, proponente de outra hipótese ainda a ser explorada (que o vírus da Covid supostamente tem marcas de corte de enzimas de restrição utilizadas em laboratório), sobre Fauci, quando ficou claro que o último mentiu que não conhecia os autores de um artigo que ele próprio pediu que escrevessem contra a hipótese da origem laboratorial da Covid: “A ciência nunca mais deve voltar a ter um papa”.

noticia por : Gazeta do Povo

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