Crenças de pouca base científica parecem orientar o ativismo
que invadiu a prática médica no tratamento de crianças que manifestam uma
persistente vontade de ser do sexo oposto, chamada de incongruência ou disforia
de gênero. Entre elas está a crença de que essas crianças nascem no “corpo
errado”, que isso seria um sinal de uma “identidade de gênero” espontânea
injustiçada pela imposição cultural de um “sexo atribuído ao nascer”, e que o
curso de ação adequado para isso seria uma “terapia afirmativa de gênero”, que
aceita o que a criança disfórica afirma sobre si mesma e aplica tratamentos
sociais, medicamentosos (incluindo bloqueio da puberdade) e, quando elas
atingirem certa idade, até cirurgias para corrigir o problema. Essas crenças
são defendidas com fervor por ativistas e pesquisadores aliados, ao ponto de
lançarem difamação e calúnia contra pesquisadores que levantem dúvidas.
No meio do caminho dessas crenças há um obstáculo. É a descoberta recorrente de que a maioria dessas crianças disfóricas se desenvolve sem necessidade dessa “afirmação” e desiste de transicionar para outro sexo. Um dos principais pesquisadores dessa linha de pesquisa é o psicólogo canadense Kenneth Zucker, professor de psiquiatria na Universidade de Toronto. Em um dos estudos liderados por ele, 88% dos meninos disfóricos acompanhados por mais de uma década desistiram da transição e se desenvolveram de modo a ficarem confortáveis com seu próprio sexo.
Esses resultados “são bem representativos de estudos de
acompanhamento similares”, disse Zucker em entrevista à Gazeta do Povo. Interessantemente,
o estudo descobriu que, entre os 12% de jovens que persistiram na disforia e se
tornaram trans, era mais comum que fossem de classes socioeconômicas mais
baixas. Zucker e colegas não sabem a razão exata disso, mas especulam que pode
ter a ver com “a noção de que a aceitação de uma identidade gay ou homossexual é
menor na subcultura da ‘classe trabalhadora’”. A intolerância contra
homossexuais tem relação com a privação de recursos educacionais e outros — entre
os 88% desistentes, a maioria dos meninos (65%) se desenvolveu como homossexual
ou bissexual. É como se, para os grupos sociais com maior dificuldade de
aceitação das minorias sexuais, fosse mais fácil para os meninos disfóricos “se
tornar mulher” do que se desenvolver como homossexual, replicando o que
acontece na cultura intolerante da teocracia iraniana, em que gays são forçados
a mudar de sexo.
Chefe de ambulatório que faz bloqueio de puberdade na USP repete inverdades
contra pesquisador
No Brasil, o Conselho Federal de Medicina estabeleceu diretrizes
para crianças e adolescentes disfóricos que permitem o tratamento com hormônio
do sexo oposto a partir dos 16 anos, mediante autorização de pais e
responsáveis. O bloqueio da puberdade, antes disso, só é autorizado em caráter
experimental. Há um ano, o Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e
Orientação Sexual (Amtigos), do Hospital das Clínicas da Universidade de São
Paulo, revelou que estava oferecendo bloqueio
da puberdade para cerca de 100 crianças disfóricas entre quatro e 12 anos.
Preocupados com a notícia, deputados estaduais estabeleceram
uma Comissão Parlamentar de Inquérito em que Alexandre Saadeh, médico
psiquiatra que coordena o Amtigos, foi ouvido no dia 22
de agosto de 2023. A sessão na Assembleia Legislativa (Alesp) durou quatro
horas.
Respondendo a uma pergunta da deputada estadual Beth Sahão
(PT) a respeito do trabalho do psicólogo canadense, Saadeh
disse que Zucker “foi acusado de abuso sexual, teve todo um… algumas
questões aí. Ele entrou em descrédito, mas ele continua publicando, ele tem uma
maneira de encarar o trabalho com identidade de gênero de uma maneira muito
específica, que é interessante. No ambulatório, a gente não segue nem a escola
canadense [de Zucker], nem a escola holandesa, e muito menos a escola americana
(…), que é afirmativa. A gente faz uma antropofagia dessas três formas”. A
“escola holandesa” foi a criadora do protocolo de transição de gênero mediante
bloqueio da puberdade, contudo.
A Gazeta do Povo levou essas afirmações a Kenneth
Zucker. “Se o Dr. Saadeh morasse no Canadá, eu o processaria por difamação”,
comentou o pesquisador. “Que ele tenha feito essa afirmação sobre mim é pouco
profissional e execrável”. Ele explicou que a acusação de abuso sexual
mencionada foi feita “não por um paciente, mas por alguém que nunca conheci na
minha vida, que nem sequer estava morando no Canadá e presumivelmente estava
‘representando’ um paciente que não existia”. O Conselho de Psicólogos do
Canadá investigou a denúncia e a rejeitou.
A respeito da alegação de que estaria em “descrédito”,
Zucker respondeu “descrédito a respeito de quê? Há diferentes perspectivas
sobre as melhores práticas para atender às crianças. Qualquer pessoa que alegue
que há apenas uma ‘verdade’ é um ideólogo”. Uma métrica popular para medir o
impacto de cada pesquisador é quantas vezes ele é citado por outros nas
publicações científicas. Enquanto Zucker foi citado mais de 16 mil vezes,
segundo a rede social acadêmica Research Gate, Saadeh acumula 374
citações.
A Gazeta do Povo perguntou a Alexandre Saadeh quais são
suas fontes para as afirmações que fez a respeito do pesquisador canadense na
Alesp. O psiquiatra pediu que entrássemos em contato com a assessoria de
imprensa do HC e nos bloqueou em um aplicativo de mensagens.
Força-tarefa da difamação
A acusadora de Zucker foi a ativista Lynn
Conway, professora de engenharia da computação na Universidade de Michigan.
Ela é citada junto a outra colega de ativismo trans, Andrea James, no livro de
2015 “Galileo’s Middle Finger” (“O dedo médio de Galileu”, em trad. livre, sem
edição no Brasil), da historiadora e bioeticista Alice Dreger. Juntas, James e
Conway formam uma força-tarefa de difamação contra pesquisadores e jornalistas
que ousem desafiar seus dogmas. Dreger teve acesso a e-mails em que as duas
ativistas coordenaram, por exemplo, ataques ao sexólogo J. Michael Bailey,
quando ele publicou um livro no começo do milênio divulgando uma teoria que
desafia a ideia do “corpo errado”. A própria autora foi convidada por Conway
para ajudar no assassinato de reputação contra Bailey, mas se recusou. Entre as
acusações falsas das ativistas, James publicou fotos dos filhos menores de
idade de Bailey e insinuou que ele os sodomizava. Dreger também virou alvo de
e-mails ameaçadores de James, com menções a seu filho pequeno, quando
investigou e denunciou o mau comportamento das duas ativistas.
James e Conway continuam em atividade. Um de seus alvos mais recentes foi o jornalista Jesse Singal, que em 2018 cobriu a questão das crianças disfóricas na revista Atlantic de uma forma não muito simpática à “terapia afirmativa”. Há três meses, em seu podcast, Singal levantou a suspeita de que Lynn Conway usa o próprio website dentro da universidade para artificialmente elevar o impacto de um site de Andrea James dedicado à difamação na busca do Google. Alguns dos difamados, ou seus parentes que jamais se engajaram na polêmica, têm como primeiro resultado para seus nomes as páginas difamatórias mantidas por James. A ativista é tão diligente em apurar a vida de seus alvos que descobriu informações não divulgadas por Singal em público, como a data da morte de sua mãe. Ela também pagou a um artista para fazer caricaturas dos alvos de difamação.
noticia por : Gazeta do Povo