O cientista político francês Gérard Grunberg fez uma interessante comparação histórica entre Putin e Napoleão.
Eles os considera representantes de uma “diplomacia da espada” – em uma expressão emprestada de Talleyrand [ Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, político e diplomata francês (1754-1838)] –, que não admitem qualquer situação de equilíbrio nas relações internacionais.
Os dois também personificam a mentalidade do Império, uma entidade territorial que carece de fronteiras estáveis. Isso pode ser confirmado pela negação de Putin da existência da nação ucraniana, o que torna provisório qualquer possível armistício.
Portanto, agora é o momento da guerra posicional e as esperanças depositadas nas contra-ofensivas ucranianas dos últimos dois anos desapareceram completamente. A utilização massiva de drones e a implementação da guerra eletrônica contribuíram para estabilizar a frente.
Para a Ucrânia, não perder é ganhar, pois, como afirmou Clausewitz [Carl von Clausewitz, militar e teórico da guerra prussiano (1780-1831)], a defesa é uma forma de guerra que obriga o atacante a derrotar o adversário.
A Ucrânia luta na defensiva e a recente queda em mãos russas da cidade de Avdíika, na bacia do Donbass, após quase dois anos de combates, foi uma vitória pírrica para Moscou – embora seja apresentada como a mais importante conquista russa no campo de batalha desde o início da contra-ofensiva ucraniana em 2023.
A especulação de que a Ucrânia poderia recuperar territórios perdidos, incluindo a Crimeia capturada em 2014, não se revelou realista, ainda que isso tenha privado os ucranianos de realizar incursões surpresa nas costas do Mar Negro ou no interior da Rússia, que, de alguma forma, pretendem ser respostas aos contínuos ataques de drones e mísseis russos contra cidades ucranianas.
Putin sempre esteve convencido de que o tempo está do seu lado e que o cansaço da opinião pública ocidental, especialmente a americana, reduzirá o apoio militar à Ucrânia.
Mas também pode acontecer de o presidente russo acabar por perder a paciência nesta guerra de desgaste e mais tarde iniciar uma grande ofensiva, semelhante à do início da guerra, embora o seu sucesso não esteja garantido – uma vez que o conflito contribuiu para fortalecer a consciência nacional ucraniana e criar um ódio pela Rússia que está destinado a durar.
Em 8 de fevereiro, Vladimir Putin concedeu uma entrevista de cerca de duas horas ao ex-âncora da Fox News Tucker Carlson e a transcrição da conversa foi imediatamente publicada no site do Kremlin.
O ditador deu ao jornalista uma extensa aula de história sobre a Rússia e a Ucrânia na qual regressou ao século IX, embora considerasse essencial justificar a posição da Rússia, mesmo que a conclusão seja conhecida.
Segundo Putin, a Ucrânia é uma nação artificial e os ucranianos nunca existiram como um povo diferente dos russos. Foi o poder soviético, tanto com Lenin como com Stalin, que contribuiu para a criação da República Soviética Ucraniana e, tal como outras repúblicas, tinha o direito de secessão legalmente reconhecido.
Muito além destas lições de história, Putin insistiu no perigo para a segurança das fronteiras russas representado pelos cinco alargamentos sucessivos da Otan.
No entanto, o seu principal argumento era de que a guerra respondia a um ato de “autodefesa”, que incluía também a população de origem russa residente na Ucrânia.
Daí as alegações de Putin de que não foi a Rússia que iniciou a guerra, mas, sim, que foi forçada a desencadear uma “operação militar especial” e observou que o seu principal objetivo continua sendo a “desnazificação”.
Evocou depois a história do extermínio pelos nazis na Ucrânia de poloneses, russos e judeus, e garantiu que o governo ucraniano não havia deixado de reabilitar falsos heróis, colaboradores de Hitler, como Stefan Bandera, nos últimos anos, o que para Moscou é inadmissível.
Esta percepção de Putin transforma o conflito na Ucrânia em uma continuação da Grande Guerra Patriótica contra o ocupante alemão.
Tucker Carlson perguntou ao seu interlocutor sobre as possibilidades de paz ou de cessar-fogo, e Putin garantiu que, nas negociações de Istambul com a Ucrânia em 2022, os ucranianos estiveram prestes a aceitar um armistício e insistiu que era uma prova de boa vontade por parte de Moscou para deter o avanço sobre Kiev.
O líder russo culpou a interferência do ex-primeiro-ministro britânico Boris Johnson pelo fracasso desta iniciativa.
Tratando-se de uma entrevista dirigida ao público americano, Putin sublinhou que era o apoio dos Estados Unidos e dos seus “satélites europeus” que estava prolongando o conflito, com o consequente risco de uma catástrofe nuclear, e que os americanos já tinham problemas suficientes com o crescimento da sua dívida ou das pressões migratórias.
Ele também fez duas declarações contundentes: “A Rússia lutará pelos seus interesses” e “Devemos abandonar a ilusão de que a Rússia será derrotada no campo de batalha”.
Pensar de outra forma, na opinião de Putin, não é uma atitude inteligente. Poderia até ter mencionado os fracassos de Napoleão e Hitler na Rússia para reforçar as suas reivindicações, embora no presente caso a agressão tenha vindo dos russos.
Por que Putim incluiu a dimensão religiosa em sua estratégia
Na sua estratégia sobre a Ucrânia, Putin não negligenciou a dimensão religiosa, como afirma Adriano dell’Asta, professor e presidente da Fondazione Russia Cristiana [Fundação Cristã Russa], no seu livro La “Pace russa”: La Teologia Politica di Putin [“A Paz Russa: A Teologia Política de Putin” (Scholé, 2023)].
Após a queda do regime comunista, no meio do otimismo mal fundamentado que surgiu após a Guerra Fria, alguns acreditaram que o renascimento da Igreja Ortodoxa implicaria uma perspectiva missionária de recristianização.
Mas, na realidade, regressou ao confessionalismo nacionalista típico da época dos czares. [O líder cristão ortodoxo e fiel a Putin] Kirill, patriarca de Moscou e de todas as Rússias, representou plenamente, desde a sua nomeação em 2009, esta tendência.
Segundo Dell’Asta, Putin, durante os seus primeiros anos no poder, interessou-se sobretudo pela geopolítica, na qual o gás e o petróleo desempenharam um papel proeminente.
Porém, logo depois, tomou consciência de que a Igreja Ortodoxa poderia ser um instrumento útil para o seu projeto imperial.
Desta forma, a Igreja tornou-se um atributo secundário da nação e do Estado até se tornar um “dicastério de Estado”, nas palavras do autor. A partir daí defende-se um “nacionalismo civilizacional” com traços messiânicos.
A Igreja Ortodoxa está, portanto, ao serviço do “mundo russo”, tendo Moscou como centro político e Kiev como centro espiritual, uma vez que a Rússia de Kiev [também conhecida como Antigo Estado Russo] do século IX é considerada a origem da Rússia cristã.
Este “mundo russo” tem uma Igreja Ortodoxa comum, representada pelo Patriarcado de Moscou, e um líder nacional que é Putin.
Nesta perspectiva, a Rússia e a Ucrânia são o mesmo país, embora a Bielorrússia não deva ser excluída, e a defesa da unidade da Rússia implica a defesa da unidade da Igreja.
Assim, a guerra na Ucrânia adquire, na percepção do patriarca Kirill, o caráter de uma missão para garantir o futuro da Rússia, em que o sacrifício de soldados tem um caráter religioso.
Em um sermão de 25 de setembro de 2022, Kirill chegou a afirmar que “seu sacrifício lava todos os pecados cometidos”.
Por outro lado, o cardeal Kurt Koch, prefeito do Dicastério para a Promoção da Unidade dos Cristãos, comentou que esta posição serve para justificar um regime teocrático, que absorve a Igreja e “priva-a da liberdade de ser profeticamente contra toda injustiça”.
A partir destas abordagens não é difícil justificar o papel de Stalin durante a “Grande Guerra Patriótica” de 1941-45.
Há alguns anos, um representante do nacionalismo ortodoxo, o jornalista Aleksandr Prokhanov, afirmou que aquela guerra não era apenas “uma vitória militar e geopolítica, mas uma vitória cristã, a vitória do Paraíso sobre o Inferno, e na minha opinião, Stalin redimiu seus pecados na obtenção da vitória”.
A respeito disso, Adriano dell’Asta afirma que Stalin passou a ser incluído entre os ícones da igreja das Forças Armadas Russas.
Esta exaltação nacionalista nada mais é do que um regresso, segundo o autor do referido livro, ao antigo paganismo russo, que está ao mesmo tempo relacionado com o eurasianismo defendido por Aleksandr Dugin, conhecido teórico nacionalista e apoiador de Putin, embora às vezes o presidente tenha se distanciado dele, especialmente devido à sua tendência esotérica.
Na já citada entrevista a Tucker Carlson, a condição cristã de Putin veio à tona, mas nesta ocasião o líder russo não enfatizou este aspecto e lembrou que a Mãe Rússia engloba diferentes religiões.
Questionado sobre o caráter pacífico do cristianismo oposto às guerras, o presidente sublinhou que o conflito ucraniano deve ser entendido como um exercício de legítima defesa e proteção dos russos da Crimeia e do Donbass, que não iniciaram a guerra, mas foram atacados por Kiev.
A insistência de Carlson no tema religioso levou Putin a divagar brevemente sobre a alma russa, mesmo com referências a Dostoiévski e ao seu caráter místico, em contraste com a alma ocidental, muito mais pragmática.
Evitou qualquer declaração que pudesse identificar a guerra como uma espécie de cruzada nascida da vontade de Deus, algo desnecessário porque o nacionalismo russo é em si uma “religião”.
Em vez disso, Putin reconheceu que não acredita que exista um desígnio sobrenatural no progresso do mundo, que é desenvolvido por uma série de leis inerentes, as mesmas que fazem os impérios aparecerem e desaparecerem ao longo da história.
Como pode ser visto, o determinismo e o nacionalismo costumam estar muito próximos. No entanto, a simbiose entre o nacionalismo russo e a religião cristã vem de longa data.
Foi um fato evidente no tempo dos czares, como destaca Adriano dell’Asta, que cita um poema, Ex Oriente lux [“Do Oriente vem a luz”], escrito pelo filósofo Vladimir Soloviev em 1890, e no qual faz esta pergunta à Rússia: “O que você quer ser? O Leste de Xerxes ou o Leste de Cristo?”.
A referência de Soloviev ao Império Persa, que procurou subjugar os gregos no século V a.C., é uma censura a uma política nacionalista protegida pela religião.
Este tipo de política ainda está em vigor na guerra ucraniana, na qual a Grande Rússia prevaleceu decisivamente sobre a Santa Rússia.
© 2024 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol: Nacionalismo ruso y religión en la guerra de Ucrania
noticia por : Gazeta do Povo