Era uma piada bastante conhecida entre os médicos dinamarqueses na Groenlândia: costumava-se dizer que se uma mulher inuíte (esquimó) fosse à consulta por ter um dedo inchado, saía de lá com um contraceptivo colocado no útero.
Uma piada de mau gosto, sim, mas com bastante fundamento na realidade. Quando, em 2022, a rádio dinamarquesa DR publicou uma série de reportagens sobre o fenômeno dos dispositivos intrauterinos (DIU) que foram inseridos em adolescentes e jovens inuítes entre o final dos anos 60 e meados dos anos 70, ofereceu uma cifra assustadora: das 9.000 que atravessaram a idade fértil nesse período, 4.500 tiveram esses contraceptivos colocados.
Muitas nem sabiam que, após um aborto ou um parto, tinham sido submetidas a esse implante e, por décadas, atribuíram a razões biológicas as fortes dores que sentiam durante o período menstrual, enquanto outras pensavam o mesmo em relação ao fato de não terem tido filhos. Muitas outras nem protestaram, pois eram menores e não estavam acostumadas a contradizer um adulto – muito menos vestido com um jaleco branco e um estetoscópio no pescoço -, então ficaram caladas até a vida adulta.
A Dra. Lyberth percebeu que seu mal-estar não era exclusivo quando publicou sua experiência nas redes sociais e perguntou se mais alguém havia passado por isso. Ela recebeu dezenas de depoimentos e, quando a série da DR foi ao ar, constatou que, sem metáforas teatrais, havia algo podre na Dinamarca.
Consentimento? Zero
“Quando colocaram o DIU em mim, eu era uma criança de 13 ou 14 anos”, conta à Aceprensa. “Por mais de 40 anos, pensei que apenas eu e minhas colegas de classe tínhamos passado por isso sem autorização prévia. Reprimi esse trauma por décadas por culpa e vergonha. Em 2017-2018, comecei a lembrar disso novamente e escrevi sobre no meu Facebook. Mas só em abril de 2022 descobri que o governo dinamarquês havia realizado uma enorme campanha para colocar esses dispositivos sem o consentimento das meninas, nem o de seus pais, e até mesmo sem o das mulheres adultas da Groenlândia”.
“Foram as jornalistas Celine Klint e Anne Pilegaard Petersen que realizaram a série de podcasts ‘A campanha do DIU’, que revelou que era uma política do governo dinamarquês reduzir a população da Groenlândia, para que não fosse muito custoso para o Estado construir uma sociedade de bem-estar tanto na Dinamarca quanto na Groenlândia. Ou seja, os médicos simplesmente agiram com base em uma decisão política. Os DIUs se tornaram uma ferramenta para esse fim”.
Se nada disso tivesse acontecido, hoje seríamos 150.000 groenlandeses
E funcionou, de fato. Segundo a rede DR, em 1970, o ministro dinamarquês para a Groenlândia, Arnold C. Normann, informou que o número de nascimentos de bebês inuítes estava diminuindo constantemente como resultado da implantação dos dispositivos, algo que eles comemoravam em Copenhague. “Na década de 1960, a taxa de natalidade começou a estagnar e nos últimos anos parece estar diminuindo. Isso se deveu especialmente ao uso do chamado DIU”, reconheceu o então ministro em um discurso perante o Folketing (o Parlamento unicameral).
As estatísticas confirmam o peso da estratégia governamental na demografia da antiga colônia: desde 1952, quando foram registrados 1.034 nascimentos, eles aumentaram até os 1.781 de 1966, um ano antes do início oficial da campanha antinatalista. Em 1967, começou a queda, com 1.685 bebês, e continuou até o ano de 1975 (quando o programa terminou oficialmente), com 815 nascimentos. De então em diante, apenas em 1997 o número ultrapassou os quatro dígitos (1.095). Em 2022, nasceram 746 crianças.
Algumas fontes até fornecem números concretos para a perda populacional causada por esse procedimento. A chefe médica da ilha, a ginecologista Aviaja Siegstad, que nos anos 1990 e 2000 começou a tratar pacientes que não podiam ter filhos e que não sabiam que tinham um DIU inserido – “não eram muitos, mas não era incomum”, disse à BBC -, estima que a população da Groenlândia (atualmente 70.000 residentes) teria aumentado muito mais.
“Se nada disso tivesse acontecido, hoje seríamos 150.000 groenlandeses. Foi uma política muito eficaz”. Havia, assegura, “uma mentalidade: que colocar um DIU em uma mulher jovem era muito melhor do que dar a ela a opção de escolher. E era o modo de pensar em todos os lugares: ‘O médico sabe o que é melhor'”.
Os inuítes, mais testemunhas do que protagonistas
“O que é melhor” coincidia com o propósito de Copenhague de dinamarquizar de uma vez por todas o território, ao qual havia concedido certa autonomia após a Segunda Guerra Mundial – em 1953, passou de colônia a membro da Comunidade Dinamarquesa – e que pretendia incluir no processo de modernização nacional.
A Dra. Naja Lyberth, vítima da campanha antinatalista, exige do governo dinamarquês um pedido de desculpas e uma compensação econômica pelos graves danos. Segundo aponta a Dra. Lyberth, como consequência desse processo, a composição das pequenas comunidades pesqueiras foi alterada forçadamente e a população indígena foi realocada em prédios em cidades maiores. “Fomos”, diz ela, “quase exclusivamente testemunhas dessa transformação repentina na Groenlândia; não tivemos muita influência no desenvolvimento da sociedade. Nos tornamos quase meros espectadores de um enorme projeto de construção”.
A Convenção da ONU sobre genocídio identifica a presença desse crime quando “são impostas medidas destinadas a evitar nascimentos dentro de um grupo”
O governo dinamarquês, por sua vez, também não ficou muito satisfeito: concluiu que a modernização do território groenlandês poderia atrasar a da Dinamarca, uma vez que, entre as décadas de 50 e 60, a melhoria das condições de vida e do sistema de saúde haviam feito diminuir as taxas de mortalidade infantil na ilha, mas a probabilidade de que os menores inuítes fossem criados sem seu pai em casa (um em cada quatro) era muito maior do que a das crianças dinamarquesas (um em cada 10), então o Estado deveria gastar muito mais recursos com aqueles para garantir creche, atenção médica, educação, etc.
Os DIUs para mulheres inuítes foram a “solução” escolhida, uma saída que alguns hoje não hesitam em classificar como genocídio, seguindo a definição oferecida pelo artigo II (d) da Convenção da ONU sobre o assunto: pode-se falar propriamente de genocídio quando são “impostas medidas destinadas a evitar nascimentos dentro de um grupo”, que é o que foi feito com os inuítes.
Não foi esta, no entanto, a primeira medida catastrófica implementada por Copenhague: na década de 1950, o governo decidiu tirar mais de 20 crianças de seis a 10 anos de seu ambiente e levá-las para a Dinamarca para viver em famílias desse país com o propósito de “mudar seu chip”. Desde o início, foi proibido que falassem em sua língua nativa.
Helene Thiesen, uma das crianças nesse caso, explicava à Aceprensa em 2015: “Fomos arrancados de nossa família, de nossa terra, de nossa língua e de nossa cultura. Baixávamos o olhar, porque éramos groenlandeses que não podiam usar sua própria língua, da qual nos envergonhávamos sem saber por quê. Nunca voltamos a estar com os nossos, o que fez com que vários de nós não soubessem como lidar com a vida, ou tivessem uma existência infeliz, ou, no pior dos casos, morressem”.
O que aconteceu com ela, nos dizia na época, “me amargura e amargurará a vida até que eu morra”.
Um pouco mais rápido, por favor
Apenas Thiesen e cinco de seus colegas, já com quase 80 anos ou mais, viveram para ouvir o pedido de desculpas oficial: em 2022, a primeira-ministra Mette Frederiksen viajou para a capital groenlandesa, Nuuk, para se desculpar com eles em nome da ex-metrópole. O governo concordou também em pagar as 250.000 coroas (mais de 33.000 euros) que o grupo de sobreviventes havia exigido em uma ação por violação de seus direitos humanos.
A Dra. Lyberth e mais de 60 mulheres prejudicadas pelo programa de DIUs – metade delas, estéreis como consequência – querem seguir o mesmo caminho: obter um pedido de desculpas oficial e compensações financeiras justas, por isso em outubro passado moveram uma ação contra o governo. Este pede tempo: uma comissão conjunta das autoridades dinamarquesas e groenlandesas está investigando as práticas de “prevenção da gravidez” aplicadas entre 1960 e 1991 e promete apresentar suas conclusões em 2025.
Mas tempo é algo que as afetadas não querem ouvir falar. Em junho passado, a Dra. Lyberth pôde se dirigir por alguns minutos à primeira-ministra Frederiksen em um evento oficial realizado em Nuuk, onde o governo se desculpava por outro ultraje do passado: a negação de toda responsabilidade parental aos homens dinamarqueses que haviam deixado grávidas mulheres nativas desde os anos 50. “Falei com ela de mulher para mulher”, conta ela. “Ela ouviu tudo o que eu disse e, depois, declarou à imprensa que não havia dúvida de que havíamos sido vítimas de um crime. Mas não houve nenhum pedido de desculpas”.
“Queremos que nosso sofrimento seja reconhecido; o dano mental e físico que o DIU nos causou, sem que tivéssemos pedido”. A indenização às prejudicadas serviria como compensação, diz ela, e simbolizaria uma espécie de pedido de desculpas pela violação de seus direitos humanos, “especialmente o direito de ter filhos, o direito de fundar uma família, o direito de ser tratadas com igualdade e não ser objeto de discriminação, e o direito de não ser submetidas a experiências semelhantes à tortura”.
Se, ao contrário do pedido de desculpas muito tardio a Thiesen e seus colegas, Copenhague examinar o caso dos DIUs com mais rapidez, ainda restarão mulheres a quem oferecer.
© 2023 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol: Groenlandia: un DIU “por la modernización”
noticia por : Gazeta do Povo