No fim da tarde de 1º de dezembro de 1955, o motorista James Blake, de 43 anos, pediu que quatro negros se levantassem para que um grupo de passageiras brancas pudessem se sentar. Elas haviam reclamado, alegando que estavam em pé, já que os lugares voltados para sua cor de pele estavam lotados, enquanto negros se mantinham confortáveis em suas áreas reservadas ao fundo. Três homens se levantaram rapidamente. A costureira Rosa Parks, de 42 anos, não. Ela decidiu que não sairia do assento.
Blake, que dirigia pela Cleveland Avenue, em Montgomery, Alabama, seguiu o procedimento padrão: parou o veículo no primeiro orelhão que encontrou e ligou para a empresa. “Coloquei meu supervisor na linha”, contaria em uma entrevista, concedida a contragosto em 1989 para o jornal The Washington Post. “Ele disse: ‘Você a avisou, Jim?’, eu disse: ‘Eu a avisei’. E ele disse: ‘Bem, então você tem que exercer seus poderes e afastá-la, ouviu?’ Foi exatamente o que eu fiz. Então os policiais vieram e a levaram embora”.
Por determinação do código da cidade, os motoristas tinham poder para ajustar a atribuição racial de assentos. A lei local também determinava que os primeiros dez lugares eram reservados para brancos. Mesmo se não houvesse brancos no ônibus, os negros tinham de se sentar no fundo ou ficar em pé. E, caso o setor dos brancos estivesse cheio, como aconteceu naquele dia, os motoristas podiam pedir que os negros cedessem seus lugares.
Não houve cena, nem discussão. “Era por volta de seis da tarde quando eu fui presa”, Rosa contaria, dez anos depois, para a BBC. “Tudo foi feito com bastante naturalidade, sem violência ou raiva por parte de nenhum de nós, nem o motorista ou a polícia. Eu fiz isso porque me senti violada como ser humano. Estava fisicamente cansada, além de mentalmente irritada com o tipo de coisa que tínhamos que suportar. Não parecia certo”. Depois de um julgamento que durou menos de 30 minutos, ela seria multada em US$ 10 e pagaria US$ 4 em custas judiciais adicionais.
Rosa conhecia o motorista, e não gostava dele. Em 1943, ela havia entrado em um ônibus dirigido por Blake. Entrou pela porta da frente, pagou a passagem, mas ele a obrigou a entrar pelos fundos — uma regra informal adotada por alguns motoristas. Quando ela desceu para voltar ao veículo pela outra porta, ele foi embora. Desde então, ao longo de 12 anos, Rosa vinha evitando um novo contato com ele, até que, cansada depois de um dia difícil no trabalho que lhe pagava US$ 23 semanais, não reparou que havia encontrado o motorista novamente.
Precedentes pontuais
A atitude de Rosa surpreendeu quem estava no ônibus. Era raro, ainda que não inédito, que algum passageiro se recusasse a obedecer às ordens do motorista. Casos pontuais, de grande repercussão, mas poucos efeitos práticos, vinham se sucedendo. Ainda na década de 1860, a educadora e ativista Charlotte L. Brown venceu uma ação judicial contra uma empresa gestora de bondes em São Francisco, depois que ela foi expulsa de um veículo segregado. Anos antes, em 1855, Elizabeth Jennings Graham questionou judicialmente a existência de veículos de transporte público segregados na cidade de Nova York — também se saiu vencedora.
Em 1904, o empreendedor e comunicador republicano negro John Mitchell Jr. organizou um boicote negro ao sistema de bondes segregados de Richmond, Virgínia. Em 22 de junho de 1954, Sarah Mae Flemming se sentou no único banco livre de um ônibus na Carolina do Sul. Foi expulsa pelo motorista, que alegou que o assento era exclusivo de brancos. Então processou a companhia. Em 2 de março de 1955, Claudette Colvin, então com apenas 15 anos, foi presa por se recusar a ceder seu assento a uma mulher branca em um ônibus lotado e segregado de Montgomery, Alabama.
Ainda assim, em geral, as vítimas da discriminação preferiam seguir suas vidas sem correr o risco de serem presas e fichadas na polícia, o que dificultaria ainda mais o acesso a oportunidades de trabalho. Mas como foi possível que uma regra tão abertamente preconceituosa fosse aceita sem maiores questionamentos?
A orientação estava baseada nas chamadas leis Jim Crow, apelido dado a uma série de legislações estaduais, aprovadas no contexto do fim da escravidão de 1863. Elas seguiam a doutrina do “iguais, mas separados”, que consideravam que os negros eram iguais, mas não precisavam necessariamente se misturar com os brancos.
Surgidas ainda no final do século 19, essas leis determinavam não apenas a divisão entre brancos e negros no transporte público. A segregação envolvia bebedouros, banheiros públicos, alas de hospitais, salas de aula, restaurantes — e até mesmo cemitérios.
Apoiadas pelos democratas, essas regras acabaram acabou por dar legitimidade a um estado de segregação tão forte que esse racismo legal influenciou ninguém menos que os nazistas alemães, que se inspiravam nas leis Jim Crow contra os negros para criar a própria legislação contra os judeus.
Pressão por mudanças
Nascida Rosa Louise McCauley, em 4 de fevereiro de 1913, em Tuskegee, no Alabama, filha de uma professora, Leona, e de um carpinteiro, James. Frequentou escolas rurais até os 11 anos, onde também aprendeu a costurar. Passou por cursos pela Industrial School for Girls e pelo Alabama State Teachers College for Negroes. Desde muito jovem, frequentou os cultos da African Methodist Episcopal Church (AME).
Em 1932, ela se casou com o barbeiro Raymond Parks, que era membro da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP – Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor). A partir de então, começou sua atuação em defesa dos direitos civis dos negros, enquanto trabalhava em diferentes empregos, desde empregada doméstica até auxiliar de hospital. Nas horas vagas, participava ativamente de campanhas para arrecadação de dinheiro para a NAACP, assim como na investigação de casos de violência contra negros.
Rosa Parks não foi a primeira a reagir à discriminação. Mas seu caso específico provocaria o estopim dos protestos e boicotes que, na prática, levaram uma série de leis de segregação, claramente inconstitucionais, a serem anuladas. A história da costureira tímida, de fala baixa e firme, fichada por se posicionar, se mostraria crucial para o sucesso do movimento, que já vinha se mobilizando. Em outras palavras, Rosa assumiu um papel de porta-voz e catalisadora da pressão social por mudanças.
Teve início então um boicote dos negros contra as companhias de ônibus locais. Eles formavam a maioria da população e 75% dos usuários do serviço, e sua recusa em utilizar os veículos lançou pressão financeira sobre as empresas. A campanha duraria 381 dias e foi liderada por um pastor, até então pouco conhecido, chamado Martin Luther King.
Ao longo da série de protestos e manifestações, Rosa seria presa novamente, em 22 de fevereiro de 1956, juntou com outras 73 pessoas que protestavam contra o indiciamento de outros 113 negros que organizaram o boicote aos ônibus.
“O que vocês, pessoas de cor, esperam ganhar com essa pressão contra a segregação?”, Rosa ouviu, durante a campanha de boicote ao serviço de transporte público. E respondeu: “Bem, esperamos alcançar direitos iguais como seres humanos”.
Reconhecimento em vida
O boicote ocorreu um ano depois que a Suprema Corte decidiu pelo fim da segregação racial em escolas. A ação seria bem sucedida: a partir de 20 de dezembro de 1956, os ônibus de Montgomery deixaram de ser segregados. Seguiu-se então uma série de novas iniciativas em prol da igualdade dos direitos civis, que atingiu o auge em 1964, com a Lei Federal dos Direitos Civis, que baniu discriminação racial em todos os estabelecimentos públicos dos Estados Unidos.
Quanto a Rosa, a campanha a deixou sem emprego e com dificuldades para se reposicionar. Ela acabou se mudando para Hampton, na Virginia, e depois para Detroit, onde seguiu suas ações de ativismo. A costureira ainda hoje é considerada uma das principais responsáveis pelo movimento pela igualdade pelos direitos civis nos Estados Unidos. Faleceu em 2005, aos 92 anos — seu marido havia morrido em 1977. Cofundou a Rosa L. Parks Scholarship Foundation, que recebia boa parte dos rendimentos advindos de suas palestras e participações públicas.
Ao fim da vida, Rosa passou a lidar com dificuldades financeiras. Em 2002, foi ameaçada de despejo por falta de pagamento de aluguel. A Hartford Memorial Baptist Church de Detroit pagou a conta, de US$ 1.800. Posteriormente, os proprietários do imóvel declararam que ela poderia viver ali, sem pagar aluguel, até o fim da vida.
Quanto ao motorista James Blake, ele seguiu trabalhando como motorista até 1974. Faleceu em 2002, aos 89 anos. “Tenho certeza de que sua falta vai ser sentida por sua família”, declarou Rosa por escrito a respeito do falecimento.
noticia por : Gazeta do Povo