VARIEDADES

“Cale a boca”, disseram: conferência de Londres enfrenta a censura

A cognição humana lida com o caos como uma pessoa organiza a roupa para lavar: separando as coisas em cestos. Animais inferiores fazem isso de maneiras rudimentares. Lagartos alternam instintivamente entre cinco respostas ao que aparece em seu campo perceptivo: lutar, fugir, comer, acasalar ou ignorar. Os seres humanos também fazem determinações instintivas. Mas, enquanto os lagartos só podem sibilar ou rosnar, o homem, como diz Aristóteles, possui logos, cujos significados incluem palavra, fala, pensamento, razão, conta, ordem, proporção. Por meio da linguagem, e especialmente da política — o intercâmbio público irrestrito de uma ampla gama de opiniões e argumentos — os seres humanos discernem, articulam e produzem ordens sociais que possibilitam não apenas a vida, mas a boa vida.

Hoje, no entanto, a liberdade de expressão e a política estão sob ataque orquestrado nas democracias liberais do Ocidente. Os consórcios público-privados que dirigem essa campanha — o que foi chamado de Complexo Industrial de Censura (CIC) — foram o tema de uma conferência no final de junho em Londres.

O Fórum da Liberdade de Expressão de Westminster foi organizado por Michael Shellenberger, um dos autores dos Twitter Files e diretor do Centro de Política, Censura e Liberdade de Expressão da Universidade de Austin. O encontro foi privado e em off para garantir que os participantes não fossem perseguidos. (Essa era uma preocupação séria: o advogado-geral da União acusou Shellenberger de ter cometido um “provável” crime depois que ele publicou os Twitter Files Brasil.) A conferência reuniu mais de 50 jornalistas, editores, acadêmicos, parlamentares, filantropos e ativistas da liberdade de expressão para discutir o problema da censura cada vez mais crescente nas democracias ocidentais. Especialistas dos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Brasil, Irlanda, Escócia, Canadá, Austrália e República Tcheca relataram como os governos estão reprimindo a liberdade de expressão em seus países de origem e ao redor do mundo.

Os palestrantes documentaram os esforços coordenados da ONU, União Europeia, Organização Mundial da Saúde, Organização dos Estados Americanos (OEA) e governo dos EUA para policiar opiniões e fatos que interferem em seus objetivos políticos, e para punir aqueles que os propagam. Eles mapearam as imensas burocracias governamentais que implementaram uma abordagem “de toda a sociedade” para a censura, aproveitando redes opacas de agências e gabinetes com uma infinidade estonteante de siglas. Os conferencistas exploraram o esforço conjunto entre as comunidades de política externa e inteligência, filantropias, imprensa, ONGs e universidades para parar a suposta “desinformação” dolosa e culposa, e a “malinformação”. E refletiram sobre maneiras de combater o crescimento alarmante de uma cultura de censura entre os jovens e aqueles da esquerda, a maioria dos quais apoia a regulamentação da expressão.

A guerra contra a liberdade de expressão está sendo travada com tratados e acordos oficiais com redações tão amplas quanto o tiro de uma escopeta de cartucho. Um dos muitos exemplos é a Convenção Interamericana de 2013 contra Todas as Formas de Discriminação e Intolerância da OEA. O Artigo 1 da Convenção inclui em sua definição de intolerância “desrespeito, rejeição ou desprezo… [pelas] opiniões” dos outros, enquanto o Artigo 4 afirma que os “deveres dos [35 Estados signatários]” incluem “prevenir, eliminar, proibir e punir, de acordo com suas normas constitucionais… todos os atos e manifestações de discriminação e intolerância.” Mas o que é “desrespeito”? O que constitui “rejeição” de uma opinião? Será que, por exemplo, a discussão sobre a conexão entre o islã e a violência é uma intolerância punível? Não há respostas claras para essas perguntas, porque os censores nunca definem seus termos. A vagueza deliberadamente incentiva a autocensura, comunicando um aviso implícito: caveat loquens, que o falante tenha cuidado.

Como explicou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, “Ódio é ódio.” Em outras palavras, “Ódio é o que nós dissermos que é.” Na Europa e em todo o mundo desenvolvido, esses sentimentos rapidamente se tornam políticas censórias. Digamos que a UE deseja considerar o racismo uma crise interna. Ela solicita estudos e seleciona e financia ONGs para produzi-los. As pesquisas perguntam aos entrevistados anônimos se, por exemplo, eles já foram sujeitados a racismo, ou o testemunharam. Os resultados fornecem “evidências independentes” de uma emergência social que o Complexo Industrial de Censura usa para justificar restrições à liberdade de expressão. Esse fenômeno ocorre onde quer que haja censura. Usando escadas rolantes intermináveis de dinheiro e poder, o CIC cria crises motivadas por agendas políticas, que usa para justificar novas repressões à liberdade de expressão. Esse é o tipo de sistema auto-perpetuante que os cientistas políticos chamam de SLS, um “sorvete que se lambe sozinho”.

A democracia ateniense, como observou um dos palestrantes do Fórum, era caracterizada pela isegoria, igualdade no exercício da liberdade, e pela parrhesia, franqueza. O CIC rejeita esses valores democráticos centrais. Sua noção de que informações “legais, mas prejudiciais” devem ser censuradas pressupõe que os cidadãos das democracias liberais não podem pensar por si mesmos.

Como resultado, o CIC infantiliza o público. A campanha sinistra “Não Alimente o Ódio” da Polícia da Escócia, por exemplo, apresenta um Monstro do Ódio peludo com uma expressão zangada, sugerindo que o chamado discurso de ódio é pouco mais do que o chilique de uma criança mal educada. “O Monstro do Ódio”, explica o site da Polícia da Escócia, “representa aquele sentimento que algumas pessoas têm quando estão frustradas e com raiva e descontam em outros, porque sentem que precisam mostrar que são melhores do que eles.” O site incentiva os cidadãos a denunciar (anonimamente, se desejarem) quaisquer “crimes de ódio” que testemunharem. É uma versão totalitária da Vila Sésamo para adultos.

"Monstro do Ódio", personagem criado pela Polícia da Escócia. Reprodução/Scotland Police/YouTube
“Monstro do Ódio”, personagem criado pela Polícia da Escócia. Reprodução/Scotland Police/YouTube| Reprodução/Scotland Police/YouTube

Os cidadãos americanos, aparentemente, também precisam de comissários para cuidar deles. Em 2021, Nina Jankowicz, que mais tarde chefiaria o agora extinto Conselho de Governança de Desinformação do Departamento de Segurança Interna, postou no TikTok um vídeo bizarro de si mesma disfarçada de Mary Poppins, cantando “Supercalifragilisticexpialidocious”, canção cuja letra ela reescreveu para explicar a “desinformação”. Por um tempo, Jankowicz desempenhou seu papel em uma plataforma chamada Alethea (do grego aletheia, “verdade”), que ajuda empresas a “detectar e mitigar desinformação” dolosa e culposa. Ela também cofundou uma organização sem fins lucrativos, o American Sunlight Project (“Projeto Americano Luz do Sol”), que busca combater “informações falsas ou enganosas” garantindo que “os cidadãos tenham acesso a fontes confiáveis.” Esse marketing corporativo exemplifica a linguagem dupla orwelliana: a escuridão é luz solar e a falsidade é verdade.

A arma mais poderosa contra esses aspirantes a censores é justamente aquela que é alvo do CIC: a liberdade de expressão, que o pensador abolicionista americano e ex-escravo Frederick Douglass chamou de “o pavor dos tiranos”. “A escravidão não pode tolerar a liberdade de expressão”, proclamou Douglass em 1860. “Cinco anos de seu exercício baniriam o mercado de escravos e quebrariam todas as correntes no Sul.” No mesmo discurso, ele observou perspicazmente que a supressão da liberdade de expressão limita as possibilidades educacionais e, assim, “viola os direitos do ouvinte, assim como os do orador.” Isso prejudica até mesmo os censores sabichões, cuja recusa em entreter oposição substancial a seus próprios pressupostos e argumentos os priva de uma oportunidade rara e passageira de desenvolver humildade intelectual.

A boa notícia é que a desonestidade do CIC foi amplamente exposta. Alegações que o governo, a comunidade de inteligência e a imprensa repetidamente descartaram como teorias da conspiração — que a Covid se originou em um laboratório chinês; que as vacinas eram ineficazes em impedir sua propagação e traziam riscos significativos; que o laptop infame realmente pertencia a Hunter Biden; e que Joe Biden está sofrendo de declínio cognitivo — todas, em rápida sucessão, se revelaram verdadeiras. Só podemos esperar que essas revelações — e a vigilância dos defensores da liberdade de expressão, incluindo aqueles que participaram do Fórum — ainda consigam frustrar nossos aspirantes a censores.

Jacob Howland é reitor e decano de Fundações Intelectuais na UATX (Universidade de Austin, a “universidade anticancelamento”). Seu livro mais recente é Glaucon’s Fate: History, Myth, and Character in Plato’s Republic (“O Destino de Glaucon: História, Mito e Personagem na República de Platão”, em tradução livre).

©2024 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês.

Conteúdo editado por:Eli Vieira

noticia por : Gazeta do Povo

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