A imagem que ilustra este texto dividiu opiniões nas redes sociais há alguns dias. De um lado, houve quem ficou enfurecido com a “desmoralização da Academia Brasileira de Letras”. Do outro, comemorou-se a inclusão de indígenas, mulheres e pessoas negras, entre outras minorias, na categoria dos “imortais da nossa literatura”.
Mas, calma, não é nada disso. Apesar da pompa, as figuras
retratadas acima não foram empossadas na instituição literária fundada em 1897
por Machado de Assis, Graça Aranha, Lúcio de Mendonça e companhia. Confundidos
pelos fardões, os comentaristas de plantão demoraram (ou nem chegaram) a
entender que a foto registra um evento realizado por outra entidade: a Academia
Brasileira de Cultura (ABC).
Graças à recente admissão das ministras Sonia Guajajara
(Povos Indígenas) e Margareth Menezes (Cultura), a ABC recebeu, pela primeira
vez, grande atenção dos veículos de comunicação. Sua fundação, no entanto, data
de dezembro de 2021, quando o educador e empresário Carlos Alberto Serpa,
presidente da agremiação, nomeou a primeira leva de acadêmicos.
Zeca Pagodinho, Wolf Maya, Fátima Bernardes, Carlinhos de Jesus, Hildegard Angel, Issac Karabtchevsky, Christiane Torloni, Arnaldo Niskier e Ney Latorraca são alguns dos nomes diplomados no grupo inicial, reforçado no dia 14 de novembro por mais 13 convidados de diferentes campos de atuação. Artistas como Daniela Mercury, Alcione, Liniker e Glória Pires, além das já citadas ministras do governo Lula, compõem esse segundo time.
Ao todos são 56 cadeiras, que homenageiam personalidades falecidas. A atriz Vanessa Giácomo, por exemplo, tem como “patrono” Chico Anysio. A filósofa Viviane Mosé, Friedrich Nietzche. O escritor e político Gabriel Chalita, Carlos Drummond de Andrade. A poeta Elisa Lucinda, Olavo Bilac. E por aí vai…
Baseada no modelo francês que inspirou a Academia Brasileira de Letras e tantas outras associações do gênero no país, a ABC também optou pelos rituais formais e a uniformização seus membros – e inclusive os chama de “imortais”.
Segundo o material de divulgação da Academia, o fardão é “confeccionado em vinho e dourado pelo Instituto Zuzu Angel [estilista e um dos ícones da oposição ao regime militar] e simboliza o amor e a riqueza de espírito”. Já o medalhão “traz consigo símbolos brasileiros como a folha de guaraná, a palmeira, bicos de tucano e um pandeiro estilizado, refletindo a diversidade cultural do Brasil”.
Dona da cadeira 28, Margareth Menezes “filosofou” em seu discurso de posse. “Nunca me imaginei imortal. Mas acredito em reencarnação e por isso todos nós somos imortais de qualquer maneira.”
Sonia Guajajara, por sua vez,
preferiu exaltar o novo governo. “Para nós, 2023 é um marco na História do
Brasil, na história da política brasileira, na história dos povos indígenas.
Estamos em um momento de reconstrução. E o convite que faço é para o
reflorestamento. Reflorestando as mentes nós vamos conseguir reflorestar os
territórios no mundo”, afirmou.
A nova turma de empossados ainda inclui outra representante dos chamados povos originários: a ativista ambiental e “cacica” (para usar o termo politicamente correto do momento) Juma Xipaia, titular da Secretaria de Articulação e Promoção de Direitos Indígenas, vinculada ao ministério chefiado por Guajajara.
“No Brasil, a maioria renega as suas raízes e desconhece a sua cultura. Riqueza não é soja, não é ouro que sai do território”, disse a líder da aldeia Tukamã, na região de Altamira (PA).
O apoio à diversidade e aos grupos da sociedade ditos “minorizados” realmente deu o tom da última cerimônia de posse da Academia Brasileira de Cultura. Como comprova a fala de Elisa Lucinda na apresentação da linguista e escritora Conceição Evaristo (referência entre as autoras negras do país e indicada à cadeira 34): “Agora está cheio de gente do povo aqui dentro, o que é chiquérrimo”.
Mecenas da ABC organiza grandes concursos públicos no país
Criada com “a missão primordial de apoiar e angariar recursos para projetos culturais no Brasil”, a ABC atualmente funciona no centro cultural da Fundação Cesgranrio – instituição fluminense comandada por Carlos Alberto Serpa e notória por organizar vestibulares e alguns dos maiores concursos públicos do país.
Na semana passada, a Cesgranrio foi anunciada como a banca responsável por elaborar e aplicar as provas do Concurso Nacional Unificado (CNU), o chamado “Enem dos concursos”. Marcado para março de 2024, o certame acontecerá em 180 cidades e preencherá 6.640 vagas em 21 órgãos do Governo Federal.
Após disputar a coordenação
do CNU com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e o Centro Brasileiro de Pesquisa em
Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos (Cebraspe), a fundação garantiu um
contrato de 18 meses pelo “fator de economicidade”: sua proposta foi de R$ 160
milhões.
Engenheiro de formação, ex-vice reitor da PUC-Rio e também presidente da Academia Brasileira de Educação, Serpa, de 81 anos, é um famoso mecenas carioca. Seus projetos contemplam iniciativas em todas áreas artísticas, especialmente no teatro. Ele inclusive construiu dois espaços para espetáculos, o Teatro Cesgranrio e o Teatro Beth Serpa (o nome é uma homenagem à sua mulher – engenheira, figurinista e, como ele, “imortal” da ABC).
Segundo diretor, entidade surgiu em meio ao “desmonte do setor cultural”
Em entrevista à Gazeta do Povo, Leandro Bellini, diretor e curador da Academia Brasileira de Cultura, conta que a ideia de fundar a instituição surgiu em um “contexto desfavorável”, a partir de conversas travadas entre ele, Carlos Alberto Serpa e a atriz Christiane Torloni.
“Foi num período em que o
setor cultural estava sendo massacrado pelo governo anterior e ainda enfrentava
as dificuldades causadas pela pandemia”, diz Bellini, que também é poeta,
roteirista, professor e secretário do Centro Cultural Cesgranrio.
De acordo com ele, a ABC não manteve qualquer tipo de relacionamento com a Secretaria Especial da Cultura (na época ligada ao Ministério do Turismo) durante seu primeiro ano de atividades, pois “não havia escuta”. “Quando a Academia foi lançada, apenas a imprensa e a sociedade repercutiram. Mas agora tudo mudou. Sentimos que podemos opinar e dar sugestões”.
Questionado acerca do viés ideológico da instituição, Bellini afirma: “Não posso garantir que a Academia é de esquerda. Temos algumas pessoas de direita no grupo, até pelo fato de ele ser plural. Porém, como 90% da classe artística se enxerga como sendo de esquerda, é natural que a imensa maioria dos acadêmicos acabe se identificando dessa forma”.
Para o diretor, a direita ficou ligada ao “desmonte da cultura”, e vai precisar se desassociar dessa imagem se quiser dialogar com os artistas.
Sobre a “missão de angariar recursos”, incluída no texto de apresentação da ABC, Bellini afirma que, pelo menos por enquanto, a entidade não atuará como proponente direta de projetos. Com uma agenda de encontros virtuais (mensais) e presenciais (trimestrais), a agremiação pretende reunir os principais e potenciais patrocinadores do país para conscientizá-los com relação à importância de apoiar as artes.
“É mais um trabalho de educação. Vamos nos colocar à disposição de empresas que, muitas vezes, por puro desconhecimento, não entendem por que é fundamental fomentar o setor cultural”, diz.
noticia por : Gazeta do Povo