Se tem uma coisa que incomoda intelequitual (apud Millôr Fernandes) é quando ele está diante de um fenômeno irracional. Ou ainda: de um fenômeno cuja racionalidade ele não compreende – e por isso chama de irracional. De fanatismo. De idiotia. É o caso da fé inabalável de muitas muitas muitas (muitas) pessoas em Jair Bolsonaro. Isso apesar de joias, da inabilidade política e das palavras desastradamente sinceras – para citar uns poucos problemas do ex-presidente.
É que intelectuais, mesmo aqueles que esbravejam contra todas as formas de controle, no fundo se veem como os únicos atores verdadeiramente racionais e livres nessa ou em qualquer outra tragédia. Por outro lado, eles veem políticos e eleitores (o resto) como peças de xadrez dispostas no tabuleiro frio de uma análise política igualmente fria. Como bispos sujeitos apenas aos movimentos que só eles, os intelectuais, determinam. Sendo que, na vida, o cavalo não anda apenas em L, os peões podem, em tese e com autorização do STF, se reunir para pedir a queda do próprio Rei e as torres por vezes desmoronam.
Por isso é que os intelectuais perdem agora a oportunidade de testemunhar, contemplar, estudar e admirar (!) algo que considero, não sem uma boa dose de exagero, fascinante. Assustador, sim, mas fascinante: a fé inabalável de pessoas simples e não tão simples, pobres e não tão pobres, estudadas e não tão estudadas, e boas e não tão boas, em Bolsonaro. Um homem do qual você pode até não gostar e eu tenho birrinha, mas que por algum motivo ainda canaliza esperanças de uma vida melhor. Esperança que não me cabe julgar.
Por que Bolsonaro é essa figura? Esse farol ou flautista de Hamelin? Não tenho a menor ideia e os intelectuais também não – mas não confessam nem se importam. É que investigar o fenômeno dá trabalho. Demanda tempo e paciência para lidar com aqueles que os intelectuais, no conforto de suas proverbiais torres de marfim, veem como inferiores. “Essa gente de mão calejada e que fala ‘pra mim fazê’”, dizem eles com desprezo. Muito mais fácil, portanto, é colocar todos no mesmo balaio da ignorância incurável e do fanatismo, quando não do interesse financeiro mesquinho.
Mas já parou para pensar que a fé inabalável em Jair Bolsonaro, apesar de todos os pesares e da repugnância cínica que aprendemos a nutrir por qualquer espécie de fé, talvez represente uma fé inabalável no outro? Eu já. E por isso digo ainda que talvez a fé inabalável em Jair Bolsonaro seja também a única fé mundana que restou a pessoas desconfiadíssimas de todos os que, no passado, lhes estenderam a mão prometendo mundos e fundos. Mas saíram com os bolsos cheios dos fundos e com o poder maléfico de subjugar os mundos.
A dimensão política do amor
E aqui eu que:
(i) tenho nojinho de nota de rodapé;
(ii) faço cara feia para citações;
(iii) quero matar quem inventou as regras da ABNT;
e (iv) só me considero intelectual na hora de lavar a louça (“Agora não dá, amor. Tô lendo um Kantizinho aqui”),
proponho uma hipótese que jamais será submetida ao escrutínio das ciências humanas corrompidas pela fé inabalada (óh! ironia das ironias!) no próprio intelecto. Mas tudo bem.
É que, em política, me parece que o intelectual geralmente despreza ou rejeita o imensurável papel do amor. Não no sentido erótico, né? Mente poluída, a sua! Tendo por referência “Os Quatro Amores”, de C. S. Lewis, estou pensando sobretudo no afeto e na caridade. O primeiro por um às vezes inconfessável senso de identificação com o ser amado – no caso, Bolsonaro. E caridade porque… Porque sim, ué. Afinal, desde quando caridade tem explicação racional com direito a definição dicionarizada, citação com carimbo do MEC, titulação em pergaminho e bibliografia para impressionar ingênuos?
Daí porque posso até me incomodar, e me incomodo, com o que vejo como idolatria a um político. a um homem cheio de falhas e fraquezas, como todos nós. Mas logo o incômodo passa. Porque prefiro admirar, cheio de curiosidade, uma lealdade política que, sincera e humildemente, não compreendo. Sem falar nessa paisagem interessantíssima que margeia os caminhos que nos trouxeram até aqui: da corrupção do PT até a descristianização da política, passando pelo compartilhamento livre de informações falsas e verdadeiras por meio das redes sociais. Ah, e tem ainda o tédio gerado por uma abundância de tudo (comida, luxo, liberdade) – e da qual muita gente não se dá conta. Mas enfim.
Mas, enfim, só queria dizer mesmo que, com essa postura arrogante e desconectada do amor fraterno que nos une (e nos une mesmo!), e sem jamais levar em conta a caridade que nos torna insuportavelmente humanos, os intelectuais “de direita” acabam por repetir os erros dos seus pares à esquerda. Que se distanciaram das pessoas normais e se recolheram ao papel comicamente insignificante de satisfazer desejos teóricos de militantes que vivem como se suas vidas fossem teses identitárias.
noticia por : Gazeta do Povo