VARIEDADES

A história real do policial que inspirou o filme Serpico, com Al Pacino

Quando ingressou na polícia de Nova York, em 1959, Frank Serpico rapidamente percebeu que não bastaria ser honesto e competente em seu trabalho diário. Para ter a consciência tranquila, ele precisaria ir além — e iniciou uma jornada solitária para denunciar a corrupção na corporação.

Eternizada para o grande público no filme Serpico (1973), dirigido por Sidney Lumet e estrelado por Al Pacino, sua história ainda hoje serve de tema para inúmeros livros. Como o novíssimo ‘O Homem Marcado’, de Jhon Florio e Ouisie Shapiro, recém-lançado nos EUA e no Brasil (pelo selo Avis Rara).

No trecho a seguir, o casal de autores narra uma operação em que Frank Serpico, hoje com 88 anos, esteve à beira da morte — e foi abandonado pelos próprios colegas policiais.

Em uma quarta-feira de frio intenso, no dia 3 de fevereiro de 1971, Frank passou a manhã cuidando de suas tarefas habituais. Limpou seu apartamento, deixou as roupas sujas na lavanderia e fez compras.

Depois ele foi ao campo de tiro da academia de polícia e treinou tiro ao alvo com cada uma de suas três armas: sua arma de serviço, sua Browning semiautomática e seu revólver Smith & Wesson .38 de cano curto.

No final da tarde, recebeu um telefonema do líder de uma equipe da narcóticos da Brooklyn North, Gary Roteman.

— Recebi algumas informações — Roteman disse, se referindo a um informante que trabalhava para ele. — Venha logo pra cá que acabou a moleza. A gente vai fazer umas prisões hoje.

Frank pegou as armas e foi para a Narcóticos da Brooklyn North na 94ª Delegacia, na região de Greenpoint. Lá se reuniu com três policiais que jamais havia visto antes, mas que naquela noite seriam os seus parceiros: Roteman, Arthur Cesare e Paul Halley.

Todos os três eram agentes à paisana, mas era difícil acreditar que eles esperavam se misturar às pessoas do lugar. Até mesmo um olhar distraído para os seus sobretudos pretos, seus sapatos de couro e seus cabelos impecavelmente cortados poderia acabar com uma operação.

Roteman era magro e tinha cabelo grisalho. Cesare tinha pele escura e nariz afilado. Halley tinha um rosto redondo e pálido.

Esses rostos poderiam ficar encobertos se eles tivessem deixado crescer barbas grandes e espessas, como Frank fazia. Em vez disso, esses três não faziam a menor tentativa de ocultar as suas identidades.

— Meu informante está esperando no apartamento dele — Roteman disse aos companheiros enquanto eles ocupavam seus lugares num carro descaracterizado.

Quando chegaram ao endereço na vizinha Williamsburg, eles apanharam o informante, um jovem porto-riquenho com óculos de armação dourada.

— Pensei que vocês não fossem mais aparecer — ele disse, esfregando as mãos sob o frio congelante enquanto se aproximava do carro.

— Bem, estamos aqui agora — Cesare respondeu.

— Entra aí. O informante se sentou no banco de trás e avisou que deveriam ir à Driggs Avenue.

— Qual o número? — Roteman perguntou.

— 778. Vire na Driggs e eu aviso pra parar quando a gente chegar ao prédio.

Em questão de minutos, eles passaram pelo edifício dilapidado de seis andares. A julgar por sua fachada elaborada, o lugar deve ter tido seus dias de glória — mas num passado muito distante.

— Um traficante chamado Mambo mora no terceiro andar — o informante disse. — Ele vende heroína

— A gente vai tirar isso a limpo já, já — Roteman disse, dando a volta no quarteirão, retornando à Driggs, e estacionando dessa vez perto do pátio de uma escola abandonada na metade do quarteirão.

Os quatro policiais elaboraram um plano. O informante conhecia os viciados da região, por isso ele ficaria na rua e observaria o prédio para ver quem entrava e quem saía

Se suspeitasse que alguém estava ali para fazer negócio com Mambo, ele esfregaria os óculos com o seu lenço. Isso indicaria aos policiais que a pessoa tinha heroína consigo.

Às oito da noite, o informante se posicionou na entrada do prédio. Estava escuro, mas um poste de luz próximo lançava alguma luz na porta da frente, que os policiais vigiavam usando binóculo.

Uma hora se passou. Então, quando uma mulher saiu do prédio levando uma sacola de compras, o informante retirou os óculos e os esfregou com o lenço. Roteman, Cesare e Halley saíram do carro e a seguiram.

Minutos depois, os três policiais retornaram; eles haviam revistado a mulher, mas não encontraram nada. Mais uma hora se passou, e nenhum suspeito saiu do prédio. Roteman sugeriu que Frank entrasse e tentasse encontrar algo.

— Por que eu? — Frank perguntou; mas já sabia a resposta. Ele era o único no carro que não parecia ser policial. Além da sua barba farta, ele usava calça jeans e botas de cano alto, um suéter com gola alta e um colete de couro por baixo de uma jaqueta grossa do exército.

Frank saiu do carro e atravessou a rua, levando consigo o revólver de serviço numa bolsa de máscara de gás pendurada no ombro como uma mochila. Ele não fez nenhum sinal para o informante quando chegou ao prédio.

Foi direto para dentro do local, passando por cima do lixo que estava amontoado na entrada. O lugar era sujo, para dizer o mínimo. O chão estava coberto de sujeira, e o cheiro de urina tomava os corredores.

Enquanto subia as escadas, por instinto, Frank checou suas outras duas armas. Sua Browning estava enfiada num coldre de cinto do lado esquerdo da cintura. O .38 estava preso do lado direito do cinto, mas ele o queria mais à mão, então puxou-o para fora e o colocou no bolso da jaqueta.

Ele continuou subindo: um lance de escadas, depois outro e mais outro. Um som abafado de música escapava de dentro de portas fechadas, e os odores dos apartamentos das pessoas viajavam pelo ar. Porco frito. Caldo de carne. Maconha.

Quando chegou ao último andar, ele passou na ponta dos pés por um vira-lata que dormia, desviou-se de alguns montes de cocô de cachorro e seguiu em frente até alcançar o telhado. A distância, as luzes da ponte de Williamsburg brilhavam no céu escuro.

Sacos de celofane rasgados e tubos usados de cola para aeromodelos estavam espalhados pelo chão. Eram sinais evidentes de uso de droga.

Os saquinhos eram do tipo usado pelos traficantes para embalar pequenas quantidades de heroína, e a cola era do tipo que os viciados inalavam na busca desesperada por uma onda barata. Os clientes de Mambo deviam usar o local para ficarem chapados.

— Pssst.

A voz veio da porta de acesso ao telhado. Frank levou a mão à sua Browning, mas relaxou quando viu o informante de pé no patamar da escada.

— Mambo está no 3G — o informante avisou. — As coisas estão esquentando.

— Certo. Desça até lá embaixo e fique de olho na entrada.

Quando o informante se foi, Frank ficou olhando do alto do telhado, esperando que ele retomasse o seu posto. Sob a luz do poste de rua, ele viu dois homens entrando no prédio.

Então voltou correndo para dentro e desceu a escada na ponta dos pés, parando antes do terceiro andar, escutando o barulho de passos enquanto eles subiam as escadas. Eles pararam no apartamento 3G, não havia dúvida.

Frank observou a movimentação na escadaria. Um dos homens bateu à porta vermelha do apartamento e resmungou algumas palavras. A porta se abriu um pouco — estava presa por uma corrente de segurança curta — e o homem passou dinheiro para alguém que se encontrava dentro do apartamento. Devia ser Mambo.

A porta se fechou, mas logo voltou a ser aberta quando Mambo entregou aos homens um envelope de papel celofane. A porta se fechou outra vez, e não foi mais aberta. O negócio estava concluído.

Frank seguiu os homens até a saída do prédio, mantendo a devida distância; quando chegou à rua, fez sinal para Roteman, Cesare e Halley. Os tiras saltaram do carro e abordaram os compradores.

Revistaram todos e encontraram dois pacotes de heroína em seus bolsos. Era a confirmação de que precisavam. Agora não havia dúvida a respeito do que acontecia no apartamento de Mambo.

Eles algemaram os suspeitos e os puseram no carro de polícia. Halley sentou-se ao volante e saiu com o carro, a fim de levar os detidos para a delegacia e registrar a ocorrência. Roteman, Cesare e Frank permaneceram no local.

Roteman propôs um plano: Frank iria direto para o apartamento de Mambo para fazer uma transação. Ele fingiria ser um viciado atrás de heroína.

— Eu de novo? — Frank disse.

— Você é o único que fala espanhol — Roteman argumentou.

— Tá bom, mas como vai ser, então?

— Você só precisa fazer o Mambo abrir a porta. Depois eu e o Cesare cuidamos do resto.

Segundos depois, os três policiais estavam dentro do edifício, subindo as escadas para o apartamento 3G. A porta vermelha ficava logo à direita do patamar da escadaria. Cesare se posicionou nos degraus da escada entre o segundo e o terceiro andares.

Roteman colou o corpo junto à porta do apartamento ao lado para se manter fora do campo de visão. Deslizando a mão direita para dentro do bolso da jaqueta do exército, Frank tirou o seu .38 de cano curto e o segurou colado à perna, apontado para baixo.

Então bateu à porta com a mão direita, posicionou o rosto diante do olho mágico e disse em espanhol que um cara chamado Joe o havia enviado e que ele precisava de uma coisa:

— Joe me mandó. Necesito algo.

Assim que a porta abriu, Frank forçou o corpo contra ela, rompendo a corrente de segurança. Ergueu a arma e tentou apontá-la para Mambo, que segurava a porta e a puxava de volta.

O corpo de Frank ficou preso na entrada, mas ele conseguiu apontar o revólver para Mambo. E houve um impasse entre os dois — cada um puxando a porta para um lado. Enquanto isso, Roteman e Cesare permaneciam imóveis. Frank virou a cabeça para olhar ao redor e ver onde os parceiros estavam.

— Ei, caras, o que diabos vocês estão esperando? — ele gritou.

Quando voltou a olhar para Mambo, foi atingido com uma explosão de luz, como se alguém tivesse soltado um rojão em seu rosto. A bala atravessou a sua bochecha esquerda, logo abaixo do olho.

Frank cambaleou e caiu, mas ainda conseguiu revidar e atirar em Mambo, que gritou ao ser baleado e correu para dentro do apartamento.

Caído de costas, em choque e com medo, Frank olhou para o teto; seu olho esquerdo estava inchado e fechado, sua visão, turva, e sangue quente escorria sem parar por seu rosto. Cesare se curvou sobre ele em silêncio.

— Pelo amor de Deus — Frank balbuciou, quase sem poder falar. — Pare o sangramento. Use o meu cachecol. Faça alguma coisa!

A voz de Roteman se elevou de dentro do apartamento:

— Polícia! Soltem as armas e saiam com as mãos para cima!

O corredor sumia e reaparecia, enquanto Frank lutava para permanecer consciente, temendo entregar-se ao sono e não voltar a abrir os olhos. A ação continuou a se desenrolar ao redor dele.

Roteman saiu correndo do apartamento e desceu em disparada escada abaixo, e Cesare também se lançou correndo atrás dele. Eles sem dúvida estavam caçando Mambo, que devia ter fugido pela escada de incêndio.

De qualquer modo, não importava o que eles estivessem fazendo: o fato é que haviam deixado Frank sozinho, morrendo. Foi então que um idoso saiu de um apartamento próximo, aproximou-se de Frank com um andar vacilante e ajoelhou-se ao lado dele.

— Não se preocupe — o homem disse com um ligeiro sotaque espanhol. — Você vai ficar bem. Eu chamei a polícia.

Minutos depois uma sirene soou a distância, e em seguida ouviram-se passos nas escadas.

Frank mal conseguiu enxergar os dois policiais uniformizados que o pegaram, carregaram-no pela rua e o colocaram no assento traseiro da viatura — mas apesar de não os distinguir bem, Frank reconheceu o olhar de pânico no rosto deles.

E enquanto permanecia deitado no banco traseiro da viatura, que seguia rápido para o Greenpoint Hospital, ele já estava bastante familiarizado com o som da sirene. Só não conseguia acreditar que ele era a vítima dessa vez.

A cena surgia em flashes, em explosões de imagens. A maca. O caminho mais rápido até a sala de emergência. As enfermeiras retirando a sua jaqueta, seu suéter, suas botas. O sangue. As agulhas penetrando seus braços.

— Ele é policial — alguém disse.

— Buraco de bala. Bem aqui. Bochecha esquerda, acima da narina.

Frank tentou chamar a atenção de um policial uniformizado na sala, mas não conseguia virar a cabeça. Nem mover os lábios.

— Não avisem a minha mãe — ele tentou dizer.

Queria impedir que ela acabasse vendo o filho se esvaindo em sangue numa sala cheia de policiais que provavelmente festejariam quando ele desse o último suspiro.

— Avisem a minha irmã. Avisem a minha irmã.

Frank não sabia ao certo se alguém o escutava. Tudo o que ele podia fazer era ficar ali estirado, impotente, enquanto um padre diante dele lhe administrava a extrema-unção — a oração final proferida a um católico antes da morte.

Conteúdo editado por:Omar Godoy

noticia por : Gazeta do Povo

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