VARIEDADES

A escassez tem a ver com mais coisas do que apenas o mercado

Por trás das equações secas e das curvas de oferta e demanda da economia moderna, encontra-se uma antropologia completa. Ela postula que os seres humanos são essencialmente seres adquiridores, buscando satisfazer desejos infinitos em um mundo finito, direcionando nossos recursos limitados para a satisfação de demandas ilimitadas. Como o economista Lionel Robbins colocou, “Fomos expulsos do Paraíso… Em todos os lugares para onde nos voltamos, se escolhemos uma coisa, devemos renunciar a outras. A escassez de meios para satisfazer fins determinados é uma condição quase ubíqua do comportamento humano”.

No entanto, por mais intuitiva que essa visão pareça hoje — realmente parece correta quando tenho que decidir se meu salário será usado para ir a um concerto, ver um filme ou comprar um novo livro de economia —, ela está longe de ser a única maneira de conceber os seres humanos e seu ambiente. A concepção de escassez dos economistas modernos tem um monopólio em nossa imaginação, argumentam Fredrik Albritton Jonsson e Carl Wennerlind em “Scarcity: A History from the Origins of Capitalism to the Climate Crisis” [Escassez: uma história das origens do capitalismo à crise climática, em tradução livre], apenas porque esquecemos as muitas abordagens concorrentes existentes. Ao revelar maneiras alternativas de pensar sobre escassez, abundância e crescimento nos últimos 500 anos, Jonsson e Wennerlind — historiadores intelectuais da Universidade de Chicago e do Barnard College, da Universidade Columbia — esperam mostrar como “a própria escassez pode e deve ser liberada de suas conotações na economia moderna”.

“Escassez” oferece um curso intensivo sobre as muitas reflexões que filósofos, artistas, teólogos e economistas tiveram sobre o assunto. E apesar de sua hostilidade em relação à economia moderna, Jonsson e Wennerlind revelam uma semelhança profunda entre ela e relatos rivais: em todos os casos, o aparentemente mundano tópico da escassez levanta algumas das questões mais fundamentais que se pode fazer. As investigações históricas de Jonsson e Wennerlind ilustram de modo útil a forma como as questões de obtenção e de gastos foram sempre subjacentes a questões sobre o homem, a natureza, a tecnologia e as suas relações.

Desejo ilimitado x Natureza limitada

Jonsson e Wennerlind identificam duas correntes de pensamento que se formaram ao longo dos séculos. A ideologia Cornucopiana defende “um domínio ativo da natureza, juntamente com uma noção dinâmica e expansiva de desejo”. Ela prevê otimisticamente a capacidade das pessoas de colher as dádivas da natureza para que possa suprir nossos muitos desejos, de fato insaciáveis, e vê a expansão do conhecimento e da tecnologia como o caminho mais seguro para fazê-lo. Filósofos como Francis Bacon e David Hume, e economistas como Adam Smith e Paul Samuelson, celebraram a capacidade das pessoas de repelir os limites da ignorância e da pobreza, promover a aprendizagem e o comércio, para, como Bacon disse, “aliviar o estado do homem”. Para eles, a ciência nos permite descobrir os segredos da natureza, enquanto a tecnologia e o comércio nos permitem aproveitar esses segredos, elevando nosso padrão de vida e melhorando continuamente nossa situação.

No outro lado está a ideologia Finitarista, que enfatiza “os limites do poder humano sobre a natureza e a necessidade de restrição e moderação dos desejos humanos”. Os finitaristas geralmente veem a natureza como algo muito mais misterioso, mas também mais frágil, do que os cornucopianos — algo mais adequado para administrar do que para dominar. Como os recursos da natureza podem ser esgotados ou perturbados, a sociedade deve aprender a conter seus desejos, buscar o “suficientemente bom” em vez de “sempre mais”, e assim alcançar um equilíbrio estável entre meios e fins. Desde as meditações românticas de Jean-Jacques Rousseau e John Ruskin, passando pelas visões sombrias de David Ricardo e Thomas Malthus, e culminando nos alertas de ambientalistas modernos como E. F. Schumacher, os finitaristas tendem a ser um grupo mais sombrio, exortando-nos a controlar nossas demandas e sendo cautelosos quanto à esperança de que novas tecnologias resolvam problemas perenes.

Esses agrupamentos são apenas uma outra forma de listar os campeões e críticos do capitalismo? Não exatamente; para Jonsson e Wennerlind, a escassez nos força a pensar em questões muito mais abrangentes do que simplesmente se os mercados livres são bons ou maus — por exemplo, se o homem é parte ou superior à natureza, e como a implementação da tecnologia transforma ambos. Teólogos como Thomas More e François Fénelon e romancistas como Daniel Defoe e Joris-Karl Huysmans tinham questões mais importantes em mente do que exatamente como o governo deve ou não regular a economia. A exposição de “Escassez” a uma ampla gama de pensadores transmite de forma convincente a variedade de pensamento dada a assuntos que hoje estão confinados ao domínio dos economistas (embora os resumos sejam às vezes muito sucintos — é possível realmente aprender algo sobre Martin Heidegger em duas páginas?).

A escassez também revela muitas ironias surpreendentes e afinidades que um mero debate sobre o capitalismo obscureceria, como a tensão entre as premissas dos pensadores e suas previsões. Os Cornucopianos podem celebrar a capacidade de alcançar nossos muitos desejos, mas apenas porque partem de convicções sombrias de como, em nosso estado pós-lapsariano, nunca poderemos ficar satisfeitos. Para eles, uma escolha sempre exclui outra — basta olhar a alegria com que os economistas estragam uma boa refeição ao lembrar que não existe almoço grátis. Os pessimistas finitaristas, por outro lado, enquanto chamam atenção de forma sombria para nossas limitações, assim como da natureza, muitas vezes se pegam sonhando acordados, assim como Karl Marx e Charles Fourier, com o dia colossal em que alcançaremos tudo o que precisamos e não desejaremos mais nada além disso.

Economia para um planeta danificado

Mas esse dia ainda não chegou. Por enquanto, Jonsson e Wennerlind afirmam que enfrentamos o novo estado de “escassez planetária”, no qual as mudanças climáticas e a destruição ambiental revelam mais claramente do que nunca os limites de nossos recursos e o que podemos exigir deles. Embora na maior parte de “Escassez” os autores evitem opinar se acham que um pensador específico está certo ou errado, aqui eles não poupam críticas. Eles atribuem grande parte da culpa pela nossa situação ambiental à “Escassez Neoclássica”, o cornucopianismo turbinado por trás da economia moderna — embora até mesmo os economistas neoclássicos admitiriam os princípios sólidos por trás do slogan “Não há Planeta B”.

Jonsson e Wennerlind argumentam que, embora os cornucopianos tenham tido um bom momento, a preservação da Terra só será possível por meio da adoção de um finitarismo adequado ao nosso tempo. Nesse aspecto, a “abordagem genealógica ao conhecimento histórico” de “Escassez” revela com sucesso a contingência de nossas ideias e, portanto, a possibilidade de pensar de outra forma.

Não é necessário ser membro do eco-extremista Extinction Rebellion [N.t. trata-se de um movimento sociopolítico que quer evitar o colapso planetário e a extinção humana] para simpatizar com o apelo dos autores por uma nova reflexão sobre o assunto nos dias de hoje. E embora eles façam questão de insistir que os ambientalistas de hoje não são “apenas reacionários ou nostálgicos”, eles estão certos de que voltar a um passado pastoril não é possível — nem que seja porque as pastagens foram destruídas. Responder aos desafios ambientais e econômicos de hoje requer não gritar “pare!”, mas perguntar: e agora?

De acordo com a própria admissão de Jonsson e Wennerlind, eles fazem pouco mais do que indicar uma nova abordagem para a escassez, mas expandir suas considerações provavelmente exigirá atenuar a fronteira entre Cornucópia e Finitarismo. Um movimento emergente entre legisladores e especialistas hoje propõe uma “agenda de abundância” cornucopiana, argumentando corretamente que a escassez de moradias acessíveis, educação de qualidade, energia limpa e outras áreas é em grande parte autoimposta por meio de políticas inadequadas, não por limites inerentes. De acordo com essa visão, males amplamente reconhecidos, como a queda da expectativa de vida, a estagnação dos salários, o aumento dos custos de criação de uma família e a degradação ambiental, são resultados não de ultrapassar nossos limites, mas de uma falha em construir e criar com os recursos disponíveis para nós.

Ao mesmo tempo, a anomia que permeia a sociedade justifica a prudência finitarista de que nenhuma quantidade de indulgência hedônica pode nos fazer felizes — um ponto óbvio, talvez, e ainda assim um que continuamente demonstramos ser incapazes de aprender. (Ironicamente, os cornucopianos concedem indiretamente essa mesma verdade em sua insistência na impossibilidade intrínseca de saciar os desejos.) A civilização precisa de mais do que a promessa de melhoria material infinita para se manter em funcionamento.

Pensar de outra forma é apostar que haverá sempre uma abundância crescente e que esta compensará suficientemente, ou distrairá, todas as necessidades mais profundas da pessoa humana. E essa é exatamente a aposta que os Estados Unidos têm feito há muitas décadas. Considere a recente pesquisa do Wall Street Journal que constatou que mais americanos do que nunca consideram o dinheiro como “muito importante”, enquanto a importância da religião, do patriotismo, de ter filhos e envolvimento comunitário despencou. Se nossos desejos materiais são infinitos, e permitimos que a satisfação desses desejos se torne o objetivo mais alto da sociedade, o que acontecerá quando a música parar, nossas demandas não forem satisfeitas e não houver mais nada para recorrer? Dívidas crescentes, crescimento lento e taxas de fertilidade em declínio sugerem que já estamos descobrindo a resposta.

E se pensarmos no estado atual da economia política americana como o resultado de uma má aposta, então talvez o lembrete de que mais precisamos seja, como atesta a referência de Robbins ao Gênesis, um lembrete ainda mais antigo, devido menos a Milton Friedman do que a Adão: que a liberdade de escolher implica sempre a liberdade de escolher mal. Nesse caso, devemos esperar que as dores da escassez continuem por mais algum tempo.

© 2023 The Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês: Scarcity Is about More Than the Market

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