VARIEDADES

A distorção da democracia: elite despreza a população que “vota mal”

O verão foi agitado para os franceses, marcado por uma grave crise política, que os Jogos Olímpicos temporariamente tiraram dos holofotes. Emmanuel Macron foi criticado por uma dissolução bastante imprudente. É claro, mas o que aconteceu desde então apenas revelou uma situação preocupante que não é nova. Desde a Revolução, a França, um país apaixonado por política, abriga as sementes da guerra civil, que estão sempre prontas para ressurgir diante da adversidade, e que só desaparecem a longo prazo quando o país é conduzido por um grande projeto nacional, o que não tem sido o caso há mais de dois séculos.

No entanto, o país está profundamente dividido entre duas Franças que parecem irreconciliáveis, tanto que a diferença aumentou sem que os sucessivos governos prestassem qualquer atenção séria a isso – embora não faltaram avisos, como mostra o exemplo dos Coletes Amarelos.

As classes média e trabalhadora, que constituem a maioria do eleitorado, ficaram bastante abandonadas com a aceleração da globalização liberal e a financeirização da economia. Um movimento que levou a uma desindustrialização catastrófica da qual essas categorias sociais, que constituem a maior parte da chamada “França periférica”, foram as primeiras vítimas. Esses também são os mesmos grupos sociais que estão sofrendo as consequências da imigração em massa e que, nesse contexto de “insegurança cultural”, não entendem a determinação das elites em buscar metodicamente uma desconstrução antropológica sem precedentes e que está destruindo todos os pontos de referência morais.

Por outro lado, a “França do topo”, aquela que governa o país e detém todos os poderes – políticos, midiáticos, culturais, acadêmicos – refugiou-se nas grandes cidades, bem protegida também pelo alto custo da propriedade, e cultiva um “entre si” que lhe permite viver em uma quase-autarquia. Assim, ela ignorou, voluntariamente ou não, o sofrimento dos franceses vítimas de um sistema que os exclui dos lugares de sucesso, pensando, de alguma forma, que eles próprios eram responsáveis por seu infortúnio.

O exemplo caricatural da abertura dos Jogos Olímpicos

Um exemplo particularmente sintomático dessa terrível discrepância entre as duas Franças foi a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos: uma cerimônia projetada e produzida exclusivamente para essa “França de cima”, desenraizada, ideologicamente globalista e adepta de todas as transgressões antropológicas mais progressistas – daí a paródia blasfema da Última Ceia – como se representasse a França como um todo, o que, felizmente, está longe de ser o caso.

Nesse contexto de forte descontentamento popular, a França Insubmissa retomou o mito revolucionário da esquerda, o da “Grand Soir”, a Grande Noite, triste exceção francesa do único país europeu a ter um partido que ainda ousa se chamar de “comunista”.

Mélenchon, sem dúvida, pensa que é Robespierre, pronto para envolver a nação em medidas tão insanas que só trariam violência e caos. E, como um bom trotskista, imediatamente clamou a vitória ao reivindicar o poder quando seu grupo é minoritário e muito atrás da Reunião Nacional em termos de número de votos. A França Insubmissa não representa mais o povo, pois seus eleitores são essencialmente moradores das cidades de classe média e alta, bem como os muçulmanos dos subúrbios.

O “bloqueio republicano” contra a RN

Diante dessa situação, a negação das elites tem sido ainda mais forte, uma vez que essa “França periférica” vota esmagadoramente na RN. Parte daí o desprezo indisfarçável por essa população que “vota mal” e é vista com condescendência. Mas, sobretudo, à medida que a RN continuou a subir em direção ao poder, isso só exacerbou sua exclusão da “respeitabilidade republicana”. “Nesse contexto, precisamos ver a ascensão do RN e a extensão do bloqueio republicano como sintomas da cisão cultural que afeta a França e os países ocidentais”, explica Christophe Guilluy (Le Figaro, 16 de julho de 2024).

Em um artigo essencial, Pierre Manent analisa as graves consequências desse ostracismo, que está colocando nossa democracia representativa em grande perigo: “o confronto interminável entre o círculo da razão, ou arco republicano, de um lado, e a Reunião Nacional, de outro, pressupõe ou leva à desativação do sistema representativo. Não há mais dois partidos representando duas partes do corpo político, mas a oposição entre os membros legítimos do corpo cívico e os excluídos dele. Esse não é mais um debate sobre a definição do bem comum; é a evidenciação da separação ontológica ou religiosa entre os eleitos e os réprobos. O metabolismo salutar da representação política, que fortalece o bem comum por meio do exercício criativo e purgativo das oposições mais agudas, não funciona mais” (Le Figaro, 18 de julho de 2024.).

Chantal Delsol foi na mesma direção: “Assim, a democracia encontra-se distorcida: enquanto a democracia se traduz, em princípio, em debate (cortês, se possível) entre adversários, nossa ‘democracia’ consiste em apontar o inimigo e a injuriá-lo” (Le Figaro, 4 de julho de 2024).

Reconciliar e unir essas duas Franças mais uma vez, levando finalmente em conta a aflição do povo francês que sofre, deveria ser uma prioridade política absoluta.

Christophe Geffroy é jornalista e escritor francês, fundador em 1990 da revista mensal católica tradicionalista La Nef, da qual é diretor desde então.

© 2024 La Nef. Publicado com permissão. Original em francês: “La démocratie dénaturée”.

noticia por : Gazeta do Povo

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