Ouvir relatos deprimidos, ansiosos ou que mostram que pessoas ao nosso redor estão descontentes com a vida, a ponto de querer interrompê-la, não é uma tarefa fácil e, por vezes, pode abalar o estado emocional do ombro oferecido. Imagine escutar essas histórias diariamente, muitas vezes por vontade própria. Nem sempre a melhor das intenções é o suficiente para se blindar das sombras que habitam a mente dos pacientes.
Essa é uma parte da rotina dos mais de 438 mil psicólogos, 13.888 psiquiatras e 3.500 voluntários do CVV (Centro de Valorização da Vida) presentes no Brasil, segundo dados, respectivamente, do CFP (Conselho Federal de Psicologia), da AMB (Associação Médica Brasileira) e da própria organização não governamental, que oferece apoio emocional gratuito.
“Se não fosse o acompanhamento psicológico e a supervisão, eu não seria a psicóloga que sou hoje. Às vezes, eu levo queixas particulares minhas para a terapia, no sentido de ‘esse caso me afetou de tal forma’, como um desabafo, ou para a supervisão, para que possa ter outras referências. A gente precisa dar vazão a isso. É bom conversar com os amigos, mas não vamos nos tratar com eles nem eles poderão nos ajudar com coisas específicas”, conta a psicóloga clínica Letícia Pombares, de 28 anos, na foto abaixo.
Ela faz acompanhamento psicológico desde 2014, quando ainda estava no segundo ano da faculdade, época em que foi diagnosticada com depressão. Embora tenha iniciado o tratamento devido a essa condição, Letícia acredita que esse suporte é imprescindível para que seu trabalho não afete sua saúde mental.
“Não existe ser neutro. Não tem como a gente tirar nossas emoções enquanto trabalha. Geralmente eu controlo, e não são coisas [os relatos de pacientes] que chegam a me abalar totalmente, mas acontece de ficar chateada com o andamento das sessões ou com o próprio relato [do paciente]. Já ouvi histórias muito pesadas, acompanhamentos complicados. Então, não tem como a gente ficar absolutamente bem com tudo o que acontece”, diz.
Psiquiatra da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), Sandra Peu afirma que o acompanhamento psicológico e psiquiátrico, assim como a prevenção ao suicídio de profissionais voltados à saúde mental, em evidência agora com as ações do Setembro Amarelo, cujo lema é “Se precisar, peça ajuda!”, é feito da mesma maneira como ocorre com o restante da população.
“Existem abordagens psicoterapêuticas e temas que são discutidos para que possamos lidar com situações de maior complexidade. Quando um especialista em saúde mental perde um paciente para o suicídio, há um grande impacto sobre ele [o profissional], e ele merece cuidados especiais, podendo variar o acompanhamento psicoterápico ou a necessidade de medicações, mas sempre com avaliações de outros médicos psiquiatras”, explica a especialista.
O psicólogo Pedro Bicalho, conselheiro do CFP, afirma que, durante a formação, esses profissionais passam a entender a importância do atendimento especializado direcionado, mas não é obrigatório que façam o acompanhamento.
“A grande maioria dos psicólogos acaba fazendo. É uma orientação que todos nós temos desde a faculdade. A psicoterapia não é só para o sofrimento. É para a evolução pessoal, o autoconhecimento. Ela vai muito além. Não é porque uma pessoa é psicóloga ou psiquiatra que quer dizer que ela não é humana e que não sofra”, diz o psicólogo Yuri Busin, de 34 anos. Ele atende pacientes desde 2010 e afirma que faz psicoterapia “desde sempre”.
É o caso também do psicólogo Guilherme Passos, de 25 anos. Em psicoterapia há um ano e meio, ele considera o acompanhamento essencial. “Sempre foi muito bem explicado e delimitado que o trabalho do psicólogo também é baseado em fazer a supervisão, fazer a terapia pessoal. Acho até que algumas condutas [dos psicólogos durante as sessões] me ajudaram na minha maneira de trabalhar. Então sempre achei e continuo a achar que é fundamental.”
Além dos psiquiatras e psicólogos, outro grupo que merece atenção é o de voluntários do Centro de Valorização da Vida, que se disponibilizam a prestar “escuta solidária” àqueles que precisam de ajuda momentânea e não têm com quem desabafar. A partir desses plantões, pessoas de todas as localidades do país, das mais diversas profissões, oferecem apoio a quem necessita.
Segundo a ONG, só em 2022, foram realizados 3.431.628 de atendimentos de apoio emocional por telefone, no número 188, por chat e por email. No primeiro semestre de 2023, foram contabilizadas 1.368.502 ligações. Entre as datas que o CVV mais recebe solicitações de apoio estão o Natal, o Réveillon, o Dia das Mães, o Dia dos Pais, o feriado de Finados e o Dia dos Namorados.
“O ato de ouvir tem duas vias. Quando eu ouço a pessoa, eu também estou me ouvindo. Começo a me conhecer, a ver as minhas dificuldades, a ver os meus recursos, a me apropriar de quem eu sou. Isso gera uma dificuldade, porque eu tenho que me entender como ser humano. Tive que trabalhar esses preconceitos comigo, e o CVV me propôs essa mudança, que me fortalece como pessoa, me torna mais consciente. Nem sempre ela é agradável, mas ela me ajuda a me construir”, relata Antônio Batista, voluntário há 25 anos e integrante da comissão de comunicação da organização.
Ele acredita que o principal impacto do voluntariado em sua vida tenha sido a oportunidade de olhar para dentro — algo que não seria uma preocupação tão natural quanto os cuidados com colesterol, diabetes ou coração, por exemplo. Batista passou, então, a reconhecer e valorizar os seus pensamentos e sentimentos.
Assim como os demais voluntários, Batista participa mensalmente das rodas de apoio oferecidas pelo CVV. Nesse espaço, todos escutam e discutem suas angústias, prestando apoio e dando conselhos. Mas a organização não oferece serviço psicológico.
De acordo com Sandra, psiquiatra da ABP, a formação desses “ouvintes” é baseada na ideia de que quem procura essa ajuda tem a capacidade de gerenciar a própria vida. “O voluntário vai ouvir o relato e potencializar as coisas boas daquele indivíduo.”
Bicalho acrescenta que esses voluntários estão dispostos a oferecer um serviço para o qual, muitas vezes, não estão formados. Assim, ficam mais expostos por não contar com as estratégias de distanciamento às quais profissionais da saúde têm acesso durante a graduação.
Guilherme acrescenta que, independentemente de serem profissionais ou voluntários, é importante que essas pessoas recebam o apoio emocional e psicológico, de modo que possam, também, ter melhores condições de trabalho.
Voluntária e coordenadora do CVV Pinheiros, em São Paulo, Sílvia Maria Andrade acredita que, diferentemente de décadas atrás, hoje as pessoas estão se olhando mais, mostrando e entendendo suas fraquezas.
“Talvez a gente ainda não saiba muito bem como fazer, mas percebemos pais, professores e adolescentes muito aflitos. Se tem algo acontecendo com meu filho, eu fico mais atenta e vou buscar terapia. Então, percebo um movimento de maior conscientização.”
Dados do último levantamento feito pela Opas/OMS (Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde), em 2017, mostram que 11.548.577 brasileiros tinham depressão (5,8%), e 18.657.943 (9,3%), diagnóstico de ansiedade.
Mas a própria organização avisa que os números podem ser maiores, tendo em vista que se passaram cinco anos e que a notificação dessas condições não é obrigatória.
“Acho que a pandemia fez com que a gente olhasse bastante para essa questão do adoecimento da saúde emocional. A gente percebeu a ansiedade em alto grau. Os jovens ficaram muito presos em casa, e isso acabou mexendo na vida dos pais também. Não teve como a gente não começar a olhar para isso”, complementa a voluntária.
No período entre 2019 e 2022, que abrange a pandemia da Covid-19, o CVV registrou aumento de 15,2% no número de atendimentos telefônicos, que passaram de 2.985.180 para 3.439.006.
Já um levantamento realizado pela Vital Strategies, organização global de saúde pública, e pela UFPel (Universidade Federal de Pelotas), mostrou que a taxa de pessoas com depressão no Brasil saltou de 9,6%, em 2019, para 13,5%, no começo de 2022, um aumento de 40% em relação ao período pré-pandemia.
O Ministério da Saúde informa, ainda, que os atendimentos de pessoas com quadros de ansiedade e depressão foram de 434.309, em 2021, para 554.218, em 2022. Já de janeiro a junho de 2023, foram realizados 10,9 milhões de atendimentos relacionados à saúde mental na atenção primária em todo o país.
“Além da nossa classe, acho que houve uma valorização da saúde mental nos últimos anos. Houve uma quebra de estigmas depois da pandemia, e as pessoas passaram a valorizar mais”, opina o psicólogo Yuri Busin.
Cerca de 5% da população brasileira faz acompanhamento psicológico. Dessas pessoas, 56,9% se tratam há mais de um ano e 16,6% tomam medicamentos de uso contínuo, segundo o panorama da saúde mental feito pelo Instituto Cactus e pela AtlasIntel e divulgado no começo de agosto.
Diante do cenário pandêmico, a psicóloga clínica Letícia, citada no início desta reportagem, voltou a buscar ajuda psiquiátrica, de modo a complementar o tratamento, fazendo o uso de medicamentos durante um período. Hoje, seu quadro é estável.
Ela nega que, como profissional, tenha medo de ser julgada pelos colegas, inclusive pelo próprio psicólogo com quem se consulta. No entanto, assim como muitas pessoas, o receio no papel de paciente surge.
“Às vezes passa pela cabeça: ‘Nossa, ele está me julgando’, e eu sei que não, porque eu também estou do outro lado e não julgo meus clientes”, declara.
Conselheiro do CFP, Pedro Bicalho argumenta que a pandemia serviu para evidenciar a importância da saúde mental não só para a população em geral, mas em especial para a própria categoria de profissionais da saúde.
“O cuidado da saúde mental do profissional de saúde mental é um cuidado em relação ao bem-estar da população em geral. Os órgãos fazem campanhas porque queremos profissionais saudáveis para prestar apoio à sociedade. O processo de psicoterapia é preventivo para todos, não para ser procurado apenas quando as pessoas estão adoecidas. Esse cuidado ajuda a preservar a vida”, observa Bicalho.
Ele ressalta que o acesso ao cuidado com a saúde mental vem sendo ampliado no país, nos últimos anos, com a democratização do atendimento psicossocial via SUS (Sistema Único de Saúde), deixando de ser um serviço essencialmente privado. Após a ação de políticas públicas, hoje os profissionais de atenção à saúde mental podem ser encontrados em hospitais, em postos de saúde, na assistência social, em tribunais de Justiça, em empresas e até no trânsito.
Apesar de haver uma maior aceitação do público em relação ao atendimento de psicólogos e psiquiatras, Bicalho afirma que ainda há o estigma de que esses especialistas, exatamente por sua formação, conseguem lidar melhor com as próprias questões emocionais — e, por isso, não precisariam se consultar com outros profissionais.
“Todo o repertório que eu tenho para um momento de crise, de autoanálise, eu desenvolvi nesses dez anos de terapia, a partir do autoconhecimento. É mais devido à terapia do que ao fato de ser terapeuta. Existe uma expectativa de que ‘a gente se vira’. Talvez tenhamos um pouco mais de ferramentas, mas não conseguimos aplicá-las em nós mesmos. Já houve vezes em que eu estava muito mal e precisei cancelar ou reagendar pacientes. Bate a culpa, mas precisamos ter a percepção de que, se eu também não estiver bem, não vou oferecer um bom serviço”, afirma Letícia.
No entanto, o psicólogo Guilherme Passos lembra que, embora haja uma valorização por parte da classe e dos pacientes, ainda existem muitos profissionais que são submetidos a condições de trabalho insalubres, estresse e burnout, o que deteriora a saúde mental.
“Tenho colegas que separavam 40 ou 50 horas semanais para atender em clínicas de convênio e que recebiam valores muito baixos, de R$ 9 a R$ 10. Isso atendendo altas demandas diárias de pacientes”, comenta.
Sílvia reitera que ter um olhar de compreensão para o cuidador é essencial, pois eles precisam saber que também precisam de cuidados.
“Se alguém vê que eu estou me cuidando, essa pessoa já vai ficar mais sensível a se cuidar também. Nós precisamos sempre cuidar uns dos outros, no sentido de compreender, ouvir, estar próximo e aceitar que o outro também tem suas dificuldades. Naquele determinado momento, ele pode não conseguir se cuidar, mas, eventualmente, achará seu caminho”, afirma a voluntária.
FONTE : R7.com