Todo dia, Davida Wynn, de 42 anos, tenta cumprir uma atividade: tomar banho, ou lavar a louça, ou preparar uma refeição elaborada. Quando termina, está exausta e precisa se sentar ou se deitar e, às vezes, adormece onde quer que esteja.
“Fazer qualquer coisa além disso é realmente insuportável”, disse. O coração acelera mesmo ao executar tarefas que não exigem esforço e, frequentemente, sente tontura – pelo menos uma vez ao mês, desmaia em casa, nos arredores de Atlanta. Em uma ocasião chegou a se ferir gravemente no rosto e, em outra, machucou o joelho.
Em maio de 2020, quando trabalhava como enfermeira da unidade de Covid de um hospital, Wynn contraiu o coronavírus e ficou tão doente que os médicos a colocaram em um coma induzido durante seis semanas. Desde então, seus exames de sangue mostram um quadro de inflamação extrema, característico de doenças autoimunes.
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A infecção por coronavírus está associada a sequelas duradouras relacionadas a problemas de saúde, condição conhecida como Covid longa. Mas há cada vez mais provas de que, independentemente dessa síndrome, o coronavírus também pode confundir o sistema imunológico, levando-o a atacar o próprio corpo, resultando em distúrbios autoimunes em algumas pessoas. Segundo vários estudos, essa consequência tem maior probabilidade de aparecer em pessoas que, como Wynn, tiveram um caso grave da doença.
Mas não é só a Covid que pode desencadear esse quadro: os cientistas sabem há muito tempo que infecções podem levar o corpo a desenvolver doenças autoimunes. O vírus Epstein-Barr, causador da mononucleose, é um exemplo clássico disso: aproximadamente uma em cada dez pessoas que têm a doença desenvolve encefalomielite miálgica, também conhecida como síndrome da fadiga crônica. Um estudo significativo do ano passado, liderado por Alberto Ascherio, pesquisador da Escola de Saúde Pública T.H. Chan da Universidade Harvard, também associou esse mesmo vírus à esclerose múltipla.
Muitos outros patógenos também desencadeiam respostas autoimunes, mas só em algumas pessoas. “Todos nós somos infectados por uma infinidade de vírus e, na maioria dos casos, isso não nos causa nenhuma autoimunidade”, observou Ascherio.
Infecções bacterianas, como a clamídia e a salmonela, podem inflamar as articulações, a pele e os olhos – uma condição chamada artrite reativa. Os enterovírus podem enganar o corpo para atacar as próprias células pancreáticas, levando ao diabetes tipo 1.
Acredita-se que o vírus HIV e determinados quadros da dengue causem autoimunidade em algumas pessoas. Mas Timothy Henrich, virologista da Universidade da Califórnia em San Francisco, observou que a covid parece promover uma reação diferente a longo prazo: “Existe algo específico no Sars-CoV-2 que parece diferenciá-lo em duração e gravidade”.
No início da pandemia, os cientistas descobriram que os anticorpos que atacam o próprio corpo em vez de patógenos – os chamados autoanticorpos – desempenham um papel importante no desenvolvimento da Covid: aqueles que tinham autoanticorpos para o interferon, componente-chave na resposta imunológica primária do sistema no combate a patógenos, antes de contrair o coronavírus tinham maior probabilidade de sofrer complicações ou morrer em razão da doença. Cerca de 10% dos pacientes com casos graves de Covid, a maioria homens com mais de 55 anos, tinham esses anticorpos, em comparação com 0,3% da população em geral.
Desde então, dezenas de estudos encontraram autoanticorpos em pessoas que tiveram Covid: até metade das pessoas que contraíram a doença carrega anticorpos que podem alterar o sistema imunológico, danificar os vasos sanguíneos, afetar a regulação da pressão arterial e causar diabetes, artrite reumatoide e coágulos sanguíneos. Uma pesquisa descobriu autoanticorpos em crianças com síndrome inflamatória multissistêmica, doença rara associada à covid. Os autoanticorpos parecem ser independentes da Covid longa – mas outros estudos relacionaram um subconjunto dessa classe de anticorpos com a condição e descobriram que sua presença é um dos quatro principais fatores de risco para a síndrome.
Outros grupos de pesquisa, porém, relataram que os autoanticorpos e a covid longa nem sempre andam juntos. Henrich informou que, com base em uma análise de milhares de proteínas, “a característica distintiva desses autoanticorpos parece ser um fenômeno relacionado à covid e à pós-Covid, mas não à covid longa”, e alguns pesquisadores alertam que a simples presença de autoanticorpos não indica uma doença autoimune.
Não está claro por que só algumas pessoas desenvolvem autoimunidade, mas é possível que a resposta envolva dezenas de genes e um catalisador ambiental. O lúpus, por exemplo, é precedido por níveis elevados de autoanticorpos cerca de dez anos antes de sua manifestação, mas muitos familiares de pacientes com lúpus, com um histórico genético semelhante, nunca chegam a desenvolvê-lo.
“A explicação provável é que a pessoa tem todos os fatores de risco, a propensão, e aparece um desencadeador final”, disse Iñaki Sanz, imunologista da Universidade Emory.
Para vincular de forma conclusiva um vírus a uma doença autoimune, são necessárias pesquisas rigorosas que acompanhem inúmeras pessoas durante muitos anos. O melhor exemplo de um estudo assim foi o liderado por Ascherio: o vírus Epstein-Barr, membro da família do vírus do herpes, infecta quase todo mundo em algum momento. Uma vez no corpo, permanece para sempre, podendo ser reativado por questões como estresse e mudanças hormonais. A reativação do vírus Epstein-Barr é outro dos quatro fatores de risco para a Covid longa.
Para avaliar sua associação com a esclerose múltipla, Ascherio e sua equipe fizeram o que chamaram de um “experimento natural”: um estudo de longo prazo com mais de dez milhões de militares em serviço ativo no Exército dos EUA. Entre 1993 e 2013, os pesquisadores coletaram 62 milhões de amostras de soro desse grupo racialmente diversificado e descobriram que aqueles que tinham contraído o vírus Epstein-Barr tinham 32 vezes mais risco de desenvolver esclerose múltipla em comparação com aqueles que não tinham o vírus – e não foram observadas relações semelhantes com outros vírus.
Menos de um milhão de americanos têm esclerose múltipla, o que indica que deve haver outros fatores em jogo. Ainda assim, os pesquisadores estão entusiasmados com a ideia de uma vacina contra o Epstein-Barr para prevenir a doença. Até o momento, não há vacinas contra esse vírus, embora algumas estejam em fase de testes clínicos.
Estudos de outras equipes também apoiam a associação entre o vírus Epstein-Barr e a esclerose múltipla. Pesquisadores dinamarqueses acompanharam, durante décadas, mais de 25 mil pessoas com mononucleose e descobriram que a condição dobrava as chances de desenvolver esclerose múltipla. Uma pesquisa publicada no ano passado forneceu uma possível explicação: o vírus Epstein-Barr imita uma proteína humana, enganando potencialmente os anticorpos criados contra o vírus. Quase um quarto das pessoas com esclerose múltipla tem esses anticorpos, “fornecendo uma base para como o vírus Epstein-Barr pode desencadear uma reação autoimune que causa a esclerose múltipla”, explicou William Robinson, médico especialista em doenças autoimunes da Universidade Stanford, que liderou o estudo.
Esse tipo de mimetismo molecular é um caminho para a autoimunidade. Mas, em outros casos, é possível que o corpo nunca elimine completamente um patógeno depois da infecção, e a persistência do vírus – estando ele ativo ou só em fragmentos – pode manter o sistema imunológico em estado de alerta máximo, o que a longo prazo pode levar à autoimunidade.
Ambos os casos necessitam de tratamento. Em um pequeno número de pessoas, os medicamentos antivirais e as vacinas podem aliviar os sintomas da covid longa, sugerindo que o caminho pode ser o vírus ativo. Henrich está conduzindo um estudo que analisa os anticorpos monoclonais em altas doses, que podem absorver fragmentos virais que permanecem vagando no corpo. Segundo ele, “se as proteínas virais estiverem causando um processo autoimune, eliminá-las pode realmente melhorar a saúde em geral”.
FONTE : R7.com