Escrever sobre um momento histórico que ainda está sendo vivido é sempre uma tarefa arriscada. Parece claro, no entanto, que o ano de 2023 que ora se despede será tema de uma disputa narrativa em pleno vigor.
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De um lado, haverá os que apontarão o primeiro ano do novo ciclo de Lula da Silva, o ex-presidiário, no poder, como tendo sido um ano marcado por tudo aquilo que, servindo-se de uma expressão de Paulo Mercadante, poderíamos chamar de “avanço do retrocesso”. A lista é imensa:
A suposição do presidente de “afirmar” o Brasil no concerto das nações enaltecendo o modelo da China, afagando as pretensões de Pequim sobre Taiwan e colocando o dedo em riste em direção à Ucrânia, enquanto o PT assinava acordo de cooperação com o Partido Comunista Chinês.
A campanha despudorada pelo Projeto de Lei da Censura, com direito a medidas governamentais e judiciais para silenciar as plataformas que se opunham à quimérica proposição.
Defesa do regime da Nicarágua e os salamaleques em relação ao ditador da Venezuela, saudando sua “democracia relativa” e levando o Brasil a ser criticado por governos vizinhos de diferentes espectros ideológicos.
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- Críticas a Israel (e não ao Hamas)
A postura patética do governo em relação à crise Israel-Hamas, basicamente condenando o direito de defesa de uma nação democrática contra um grupo terrorista.
As indicações de Cristiano Zanin e Flávio Dino ao Supremo Tribunal Federal.
A cassação de Deltan Dallagnol, o deputado mais bem votado do Paraná, acolhida prontamente pela Câmara dos Deputados.
O elogio aberto do presidente da República ao comunismo no encontro do Foro de São Paulo.
O Tribunal Superior Eleitoral fabricando peças de propaganda.
Ministro do Supremo discursando em claro “comício” no congresso da UNE.
Bloqueios de verbas para educação — que, em outro governo, seriam motivo de escândalo.
E crescimento de invasões do MST.
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Ainda sobre 2023
Tudo isso não passa de uma seleção dos fatos que chamam a atenção apenas neste primeiro ano de retorno do lulopetismo, deixando-se de lado as consequências econômicas de uma mentalidade sistematicamente gastadora, que só não se manifestam plenamente porque alguns fatores, como o trabalho do Banco Central autônomo, ainda resistem.
Configura-se a intensificação do consórcio entre Executivo, Judiciário e setores da velha imprensa na condução dos rumos do país, com alguns laivos muito tímidos de reação do Legislativo, jamais à altura do que o problema exige. A democracia liberal-representativa está rendida diante da hipertrofia do poder togado, com o beneplácito de muitos jornalistas, que deveriam ser os primeiros a contestar a apoteose do arbítrio.
Nem tudo é tragédia; por exemplo, os esforços de algumas vozes, como as do Instituto Livre Mercado e da Frente Parlamentar pelo Livre Mercado, em Brasília, permitem que alguns “gols” da turma da tirania sejam impedidos, obstaculizando nosso mergulho na absoluta esquizofrenia. Muito pouco, porém, perto do que o Brasil pode e deve almejar.
“‘Direitos humanos’ e ‘o amor venceu’ são apenas slogans“
Lucas Berlanza
Muitos, ainda assim, se cegarão voluntariamente a tudo isso e compreenderão 2023 por outra lente, bastante distinta. Dirão que este foi o ano em que, no dia 8 de janeiro, um terrível golpe de Estado fascista perpetrado por alguns vândalos na Praça dos Três Poderes justificou uma reação heroica das instituições republicanas, preservando com isso a democracia brasileira.
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Graças a tal imperativo, todos os absurdos que acabei de listar seriam distorções da extrema direita ou detalhes plenamente desculpáveis. Justifica-se, também, por exemplo, que um dos detidos pelos eventos de 8 de janeiro tenha morrido na cadeia depois de seus pedidos de socorro serem ignorados — porque, claro, “direitos humanos” e “o amor venceu” são apenas slogans.
Sobre as duas versões do ano
O que as duas principais interpretações sobre o ano político do Brasil em 2023 mostram é que estão em choque visões diametralmente opostas quanto ao que seja a própria democracia, o que seja o próprio sistema político, o que seja a própria “sociedade aberta” popperiana em que ambos os lados alegam querer viver.
Para uns, é uma sociedade em que correntes de opinião se organizam e se fazem representar, dotando os respectivos representantes da responsabilidade de elaborar as leis. Para outros, é um regime em que os juízes podem e devem atuar como uma espécie de vanguarda iluminista para fazer compulsoriamente avançarem as opiniões “certas” e proteger a sociedade de todas as correntes de pensamento indesejadas.
O futuro do Brasil depende muito de qual das duas leituras se imporá nos anos subsequentes. A ver — e trabalhar para que todos constatem, parafraseando o escritor britânico Chesterton, que, afinal, a grama é verde.
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noticia por : R7.com