No direito societário e no mercado financeiro, é muito comum o uso de expressões e jargões estrangeiros, notadamente em inglês, para se referir a alguma estratégia ou disposição contratual. Como exemplo, o earnout, que seria a parcela futura do pagamento de uma aquisição vinculada a obrigações pré-estabelecidas —como lock-up, OKR’s, KPI’s (mais termos em inglês)— em um determinado período de tempo ou o white Knight, quando uma terceira parte faz uma oferta de aquisição para salvar a empresa-alvo de um hostage takeover.
Uma cláusula muito utilizada e que vem do direito americano é a poison pill (pílula de veneno) que nada mais é do que um mecanismo para evitar uma concentração de controle nas mãos de apenas um acionista que, tendo a maioria dos votos, pode provocar mudanças profundas na companhia privilegiando interesses próprios. Ela busca evitar as “ofertas hostis” (hostile takeover) de aquisição da empresa por um terceiro que entra na companhia de modo abrupto e interessado em tomar o controle ou mesmo de um sócio.
Essa cláusula pode se manifestar no estatuto/contrato social ou até mesmo no acordo de sócios/acionistas quando há disposição que regula e limita a aquisição de novas ações por majoritário ou por quem deseja sê-lo numa mudança de controle, ou seja, uma vez adquirido determinado percentual (mais comumente entre 10 e 35%) ou número de ações, o adquirente é obrigado a realizar uma oferta para aquisição das ações ou quotas dos outros acionistas ou sócios e ainda lhes pagar um prêmio ou implementando ágio nas ações que nada mais é do que aumentar o valor das ações ou quotas quando o majoritário pretende comprar mais participações, o que o fará desembolsar um valor significativamente maior para conseguir o controle da companhia ou sociedade, dificultando que isso ocorra. Ou ainda, criando um cenário em que são ofertadas aos minoritários ações por um valor abaixo do mercado/justo para diluir o novo acionista e impedir que tenha o controle da companhia.
As poison pills são uma saída estratégica para manter a dispersão acionária, desestimulando a concentração de capital, evitando também as já citadas aquisições hostis e ocorrem com muita frequência no mercado financeiro e nas negociações com grandes grupos empresariais.
E aí vem a dúvida: será que elas se aplicam nas “empresas familiares”, ou melhor, em holdings patrimoniais? Seriam esses dispositivos úteis em um contexto mais “doméstico”?
A governança corporativa é pautada pela criação e operacionalização de um conjunto de mecanismos (práticas, políticas e diretrizes) que visam fazer com que as decisões sejam tomadas de forma a otimizar o desempenho de longo prazo das empresas, promovendo a sua transparência, equidade e responsabilidade na gestão.
Embora as empresas familiares apresentem peculiaridades, como a dificuldade na sucessão e o relacionamento entre os membros da família, a holding familiar é uma empresa como qualquer outra e as boas práticas de gestão devem ser implementadas, inclusive programas de compliance, por exemplo, para mitigar desequilíbrios na tomada de decisões, favorecendo determinado sócio ou acionista –mesmo que ele seja um familiar (normalmente com mais poder econômico ou com mais perspectiva de concentração de quotas/ações, por sucessão).
Atrelada à ideia da gestão responsável e transparente da empresa está o desejo do patriarca e da matriarca de transferirem seu patrimônio e criar as regras que eles bem entenderem para isso. Suas vontades devem ser obedecidas sob pena de recompra das ações da holding ou até mesmo a perda de parte do patrimônio, já que legalmente no Brasil o Código Civil dispõe que 50% do patrimônio do de cujus é obrigatoriamente dos herdeiros necessários.
E é nesse sentido que as poison pills podem ser úteis. Nada melhor que bons exemplos para ilustrar as situações cotidianas. Se um pai constitui uma holding, integraliza todo o seu patrimônio nela e transfere as quotas para seus quatro filhos de forma igualitária e seu desejo é que se mantenha assim: todos os filhos com percentual igual, evitando que um se sobreponha aos demais.
No entanto, um dos filhos não é afeto ao negócio e prefere vender as suas quotas embolsando uma boa quantia. Se há disposição acerca do direito de preferência (o que é muito comum), obrigatoriamente ele deverá primeiro oferecer aos irmãos sócios e só depois a terceiros. Se ele oferece primeiro para um irmão de quem é mais próximo, esse irmão, se aceitar, terá 50% da empresa, tendo um percentual enorme na participação. Ou, se é certo que apenas um dos irmãos terá condições de adquirir a participação de um dos sócios, que possivelmente mais precisa do valor ou a quem mais interessa receber um montante financeiro.
Se presente no contrato social ou acordo de sócios disposição de que se qualquer dos sócios adquirir mais de 30% das quotas, deverá obrigatoriamente ofertar comprar as quotas dos demais, os outros dois irmãos têm a possibilidade de sair da empresa ou inviabilizar o negócio porque o irmão interessado na compra talvez não disponha de capital suficiente para adquirir as partes deles. A eles caberá aceitar ou não. Portanto, a poison pill não proíbe que um majoritário assuma o controle, mas possibilita aos minoritários sair da empresa diante desse novo cenário ou dificultar que um dos sócios se torne majoritário, o que é uma auto regulação da holding com relação à defesa dos minoritários.
É evidente que, para que a cláusula funcione bem, deve estar claro no acordo de sócios o método de avaliação para a oferta de compra das quotas, do contrário, os minoritários ficam prejudicados e a cláusula se torna ineficaz.
Dessa forma, a poison pill presente no contrato social ou acordo de sócios inibe um dos irmãos de se tornar majoritário, sob pena de pagar um alto preço, experimentando do seu próprio veneno.
O mesmo raciocínio pode ser empregado para oferta de quotas a terceiros. Suponhamos que o patriarca não queira terceiros na holding. Uma excelente saída é dispor que a venda de mais de 25% de participação na empresa para não membros da família necessariamente ativará o gatilho e o valor das quotas a serem adquiridas pelo terceiro será três vezes maior do que o valor do Patrimônio Líquido ou do método eleito para avaliação da participação societária (além de, por exemplo, um tag along no mesmo preço para os demais sócios; ou só o tag along sobrevalorizado para os demais herdeiros).
Portanto, mesmo no contexto de empresas familiares, estruturas mais simplificadas tendo em vista o mercado financeiro e as companhias de capital aberto que faturam milhões ou até mesmos bilhões, há sim funcionalidade para esses mecanismos sofisticados no ambiente mais acanhado das holdings.
Tudo vai depender do que o patriarca e a matriarca desejam e do contexto familiar e patrimonial do cliente, fazendo-se necessário um excelente conhecimento da situação familiar e do direito societário para implementá-las no contexto do planejamento patrimonial e sucessório.
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noticia por : UOL