A atriz Maeve Jinkings quer falar sobre o que há de feio e sombrio no Brasil. E, até agora, diz ter conseguido.
Com Irene, protagonista do longa “Carvão” (2022), ela levou às telas uma família brasileira que lida, de forma dissimulada, com temas como adultério, homossexualidade e até mesmo assassinato. Em “Pedágio”, ainda inédito, Maeve dá vida a Suellen, uma mulher pobre que tenta financiar a “cura gay” de seu filho.
O anseio artístico de retratar um lado menos fotogênico da sociedade brasileira, conta a atriz, foi gestado junto a uma crise existencial, originada a partir da queda de Dilma Rousseff (PT) e agravada com a Presidência de Jair Bolsonaro (PL).
Um roteiro da cineasta Carolina Markowicz, que assina tanto “Carvão” quanto “Pedágio”, deu a ela a chave para botar pra fora o que tentava elaborar. “Eu vou falar do lodo, mas quero falar de todo o lodo. Porque o lodo não é um privilégio de classe, o lodo é humano. E é nesse lugar em que a gente está agora”, concluiu Maeve, ao ler um dos projetos em 2020.
Passados alguns anos, o desejo se mantém. “Hoje em dia estou ainda mais interessada no feio do que estava há sete anos”, afirma à coluna. “Um governo de ultradireita foi derrotado nas urnas, mas a herança desse período está aí, muito viva.”
Na próxima semana, “Pedágio” será exibido na 48ª edição do Festival de Toronto, no Canadá. O longa também consta na pré-seleção da Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais para representar o Brasil no Oscar. “Uma indicação para o Oscar dá uma visibilidade brutal para um filme”, diz a atriz, entusiasmada com a deferência.
Maeve se encontrou com a coluna em um café na Asa Norte, em Brasília, cidade onde nasceu e que ainda visita por causa da família. No local, foi abordada por admiradoras que rasgaram elogios a seus trabalhos. Uma delas pediu licença para interromper a conversa.
“Eu queria te parabenizar, você é muito maravilhosa. O seu trabalho é muito incrível. Assisti ‘Os Outros’, que forte! Parabéns, viu?”, afirmou a fã, ao falar sobre a série produzida pelo Globoplay. “Isso é muito gostoso”, diz Maeve, sorridente, após a mulher deixar o local.
Apesar de ostentar uma premiada carreira por trabalhos independentes no cinema brasileiro, que inclui títulos como “O Som ao Redor” (2012) e “Aquarius” (2016), de Kleber Mendonça Filho, e “Boi Neon” (2015), de Gabriel Mascaro, a atriz reconhece que a televisão tem um poder maior de alcance e de diálogo com o público.
Ela admite, no entanto, que tinha receio de atuar na TV aberta. Em 2015, quando foi convidada para fazer a sua primeira novela, “A Regra do Jogo” (TV Globo), diz ter pensado em desistir do papel de Domingas, uma mulher vítima de violência doméstica.
“Eu li o texto pela primeira vez e falei: ‘Meu Deus, mas isso não existe! Isso é uma caricatura! Não é possível esse grau de submissão e humilhação de uma mulher’.”
Maeve diz ter ficado em crise durante uma semana. “Pensei, de verdade [em desistir]. Cheguei a falar para minha família, e eles: ‘Não, pelo amor de Deus”, conta, rindo.
“Fui entrevistar mulheres, li vários livros de uma terapeuta francesa sobre assédio físico e moral. Nisso, vi que a ignorância não era da televisão, era minha”, segue. “Tive que admitir que não era o texto que era caricato, mas que era eu que tinha lacunas sobre as mil possibilidades de ser mulher no país em que a gente vive.”
Além do reconhecimento nacional, Maeve se recorda que sua primeira experiência na televisão a expôs a reações exageradas e pouco acolhedoras. “Comecei a sentir do público, no meu corpo, toda a rejeição e falta de compreensão dessa complexidade. As pessoas ficavam irritadas porque eu não agia.”
Maeve diz se recordar de ocasiões em que populares se aproximaram sem muita cerimônia. “Lembro de um dia, no aeroporto do Rio, ouvir uma pessoa gritando: ‘Olha lá a mulher que apanha’.”
Em outro episódio, um homem teria pedido uma selfie enquanto passava um de seus braços em volta do pescoço da atriz, puxando-a junto ao seu corpo, como se estivesse posicionado para aplicar um mata-leão.
Brasiliense criada em Belém, Maeve, hoje com 47 anos, descobriu seu desejo pelo ofício aos dez, em um um lugar improvável: uma aula de matemática. Na ocasião, coube a ela ser a narradora de uma encenação teatral que misturava literatura e matemática.
“Acho que o instante em que a chave virou, para mim, foi quando a gente estava contando a história. Lembro de sentir a turma toda em silêncio, olhando pra gente. Não era sobre ser o ponto de atenção, mas sobre sentir essa coisa da comunhão.”
“Eu virei para minha amiga e falei: ‘Um dia eu vou ser atriz. Mas não pode contar pra ninguém’”, relembra, gargalhando. O segredo foi mantido por muito tempo pela amiga e pela própria Maeve —aos 18 anos, ela entrou em um curso de publicidade mesmo já sonhando com os palcos.
Aos 22, após se formar, a atriz aspirante decidiu se mudar para São Paulo para cursar teatro. Pouco depois, entrou na Escola de Arte Dramática da USP (Universidade de São Paulo). “Fui com tanta sede que toda a dureza de São Paulo passou batida. Eu estava muito ocupada em descobrir uma parte minha que tinha negligenciado por muitos anos.”
Na capital paulista, foi garçonete, animadora de festa e produtora cultural. Ao se formar na faculdade, seus trabalhos como atriz ainda não pagavam suas contas, e Maeve decidiu passar um período de seis meses em Brasília para refletir sobre o seu futuro.
Durante o sabático, em 2008, a atriz recebeu um convite do padrasto, que é pernambucano, para passar o Natal no Recife. A estadia de Maeve acabou se estendendo para além da data comemorativa. “Adiei minha passagem cinco vezes, fiquei lá por três meses.”
Uma coisa levou à outra, e pouco depois Maeve se viu morando na capital pernambucana e estrelando seu primeiro longa, “O Som ao Redor”, que consagrou seu nome no cinema nacional. Ao relembrar do feito, Maeve gargalha ao dizer que seu pai, um comerciante, até hoje não compreende o papel.
“Ele fala: ‘É bom. Eu gosto, minha filha, daquele filme. Mas eu não me conformo com aquilo que ele [o diretor Kleber Mendonça Filho] fez, botando você naquela máquina de lavar. Não me conformo. Pra quê fazer aquilo?”, conta ela, ainda rindo. Na produção, a personagem de Maeve, uma dona de casa, se masturba sentada em uma máquina de lavar.
A atriz é também filha de uma fotojornalista, de quem diz ter herdado uma vontade aguçada por destrinchar tudo aquilo que não compreende. O avô materno, um comunista, foi preso durante a ditadura militar (1964-1985). Depois de solto, fundou a Livraria Jinkings, em Belém, que constantemente era alvo da repressão.
“Eles têm altas histórias dos meganhas, como chamavam os policiais, chegando e proibindo livros que não tinham nada a ver. Só porque tinha uma capa vermelha, levavam. A livraria até tinha uma estantezinha falsa, era tipo um baú. [Quando a polícia chegava], a estante caía e escondia os livros”, conta a atriz.
“Acho que talvez o fotojornalismo foi a maneira que a minha mãe encontrou de tentar entender o que para ela era muito difícil de entender. Por que eles sofriam aquela violência?”
Maeve diz ter se reconectado com o histórico familiar em relação ao regime militar durante o governo de Jair Bolsonaro, que, em suas palavras, “enaltecia um torturador, festejava a ditadura, desprezava a cultura”.
“Os movimentos conservadores no Brasil, historicamente, associam os portadores da cultura brasileira a algo necessariamente subversivo —acho que isso é, inclusive, desejável nas artes, mas não só isso”, diz.
“Para mim, o que a gente faz é um pouco se olhar no espelho, e isso às vezes é bonito, e às vezes é feio. A gente não está aqui só para dizer o que é agradável”, segue. “Nosso país foi forjado em bases autoritárias, violentas. A gente tem uma cultura que tem muita intimidade com o autoritarismo. Acho que isso é uma qualidade quase oposta ao trabalho do artista”, afirma ainda.
Foi em meio à onda conservadora do bolsonarismo que Maeve se viu apaixonada, pela primeira vez, por uma mulher. Carolina, a cineasta de “Carvão” e “Pedágio”, capturou sua atenção enquanto as duas trabalhavam no segundo longa, no final de 2021.
“Agora é uma coisa totalmente dada pra mim, mas durante um período foi desconfortável. Essa porção de preconceito, de homofobia —de lesbofobia, no meu caso—, muitas pessoas que amam pessoas do mesmo sexo, acabam reproduzindo e vivendo isso no próprio corpo.”
“Por isso que eu estou tão ansiosa para dividir ‘Pedágio’ com as pessoas. Eu, uma mulher de uma família progressista, artista, super ‘pra frente’, que falava ‘ah, não, porque eu sou bi’, tive que lidar com a minha parcela de auto-ódio”, diz.
“Felizmente, eu tenho o privilégio de fazer análise, de ter um ofício que também me possibilita pensar, discutir e debater, que me acolhe nesse sentido. E, mesmo assim, eu sofri. E eu não sabia que estava sofrendo de auto-ódio. Eu achava que estava sofrendo de confusão mental, de [me perguntar] ‘o que é isso?’, ‘o que é isso que eu estou sentindo?’.”
“Uma coisa é você falar, imaginar que isso pode ser uma possibilidade, ter atração física e ficar com uma mulher. Outra coisa é você amar uma mulher e desejar viver socialmente, assumir socialmente. É outro rolê. É outra versão de você mesmo. É outra maneira que o mundo te olha, é outra maneira que o mundo te recebe. E eu vi isso. É um olhar que vai na mão dada, que olha quando você dá um beijo, é uma reprovação muito sutil.”
Ao falar sobre os rumos do país sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Maeve relata sentir um certo nível de ansiedade. “Já passamos de oito meses de governo. Começo a ficar ansiosa, começo a sentir vontade de me aproximar também para cobrar, à esquerda. Mas também estou consciente, e sem querer ser permissiva, de que o trabalho de reconstrução é brutal.”
“Acho muito saudável e desejável que, o mais rápido possível, o nosso Ministério da Cultura consiga se organizar, de modo a fortalecer a nossa comunidade audiovisual com políticas públicas que permitam que a gente volte a caminhar e a produzir”, diz ela.
A atriz defende que o governo federal priorize pautas como a regularização do trabalho em plataformas de streaming, novas regras para o pagamento de direitos autorais e o retorno da cota de tela para produções do audiovisual brasileiro.
“Eu só imaginei que podia fazer o que eu faço porque vi filmes nacionais, porque fui exposta a isso. Se não, sei lá, talvez eu estivesse sonhando em ser a Nicole Kidman. Tudo bem, eu até poderia ir pra Hollywood —estaria tudo certo e eu faria isso numa boa. Mas o lugar onde eu me sinto mais potente, e onde eu inegavelmente vou ter mais ferramentas de trabalho, é na cultura que me deram de mamadeira.”
noticia por : UOL