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Tibete debate sucessão do dalai-lama, 88, e prevê confronto de China e Índia

Em uma manhã chuvosa de julho, milhares de pessoas se reuniram no mosteiro de Namgyal, no norte da Índia, para comemorar o 88º aniversário do 14º dalai-lama.

O líder espiritual tibetano disse que planeja viver além dos 113 anos e deve abordar a questão de sua reencarnação —incluindo se ele será reencarnado ou não— daqui a dois anos, quando completar 90.

“Estou determinado a servir a todos nas próximas décadas”, disse ele a uma grande multidão de exilados tibetanos e indianos, quando falou sobre sua missão e brincando sobre o fato de ainda ter todos os dentes. “Vocês também devem fazer suas orações pela minha longa vida.”

Mas, nos bastidores, já há sinais de que tanto a comunidade de exilados tibetanos quanto a liderança da China estão intensificando os preparativos para sua morte —um evento que tem o potencial de desencadear um rebuliço na política internacional.

A morte do dalai-lama poderia estabelecer uma disputa entre os líderes comunistas ateus em Pequim e os budistas tibetanos exilados sobre quem terá o direito de orquestrar os rituais espirituais usados no passado para “descobrir” sua reencarnação e designar um sucessor.

Seria uma disputa que também poderia envolver a Índia e os Estados Unidos, tornando a saúde do laureado com o premiê Nobel e suas perspectivas de longevidade uma questão de crescente interesse internacional, muito além do centro de exílio de Dharamshala.

A liderança política da comunidade de exilados afirma que o processo de sucessão está totalmente sob o controle do dalai-lama. “No que diz respeito à reencarnação, cabe inteiramente a Sua Santidade, porque é Sua Santidade que vai renascer”, diz Penpa Tsering, o Sikyong, ou líder da Administração Tibetana Central com sede na Índia. “Portanto, serão as pessoas ou instituições que ele confiará que buscarão sua reencarnação, e ele pode deixar sinais definitivos sobre onde ele nascerá.”

Ao mesmo tempo, a comunidade está começando a fazer preparativos para a logística e outros arranjos que acompanharão a morte do dalai-lama, diz o Sikyong. Isso inclui como se comunicar com a comunidade internacional e como acomodar o que se espera que sejam grandes números de visitantes em Dharamshala, caso ele morra lá.

Enquanto isso, exilados tibetanos e analistas dizem que a China, que afirma ter a palavra final sobre a nomeação, está consolidando os preparativos para seu próprio processo de seleção paralelo. Eles acreditam que isso pode ser uma repetição de sua instalação de um panchen lama —o segundo líder espiritual do budismo tibetano—, em 1995. Exilados dizem que o panchen lama não é reconhecido pela maioria dos tibetanos.

A transição, quando ocorrer, poderá se tornar uma nova e potente fonte de atrito entre a China e a Índia, que tem hospedado o dalai-lama desde que ele fugiu para o exílio em 1959, em um momento em que os dois gigantes asiáticos estão em desacordo em relação à sua fronteira.

Certamente terá repercussões nos EUA em um momento de rivalidade sino-americana já intensa. O atual dalai-lama conta com apoio bipartidário: a Lei de Política e Apoio ao Tibete, aprovada em 2020, pede a imposição de sanções a quaisquer autoridades chinesas que interfiram no processo de seleção de líderes tibetanos. Em dezembro, Washington impôs sanções a dois funcionários chineses por supostas “graves violações dos direitos humanos” no Tibete.

O processo também promete chamar a atenção à medida que os líderes comunistas chineses buscam moldar e manipular um ritual religioso. “Por um lado, eles acreditam no comunismo, que chama o budismo ou qualquer religião de distração, e ao mesmo tempo estão interessados em reconhecer a reencarnação, que é muito religiosa”, diz Lhakdor, um monge que serve como diretor da Biblioteca de Obras e Arquivos Tibetanos em Dharamshala. “Isso é pura mentira e uso da força; nada a ver com religião.”

Para o Partido Comunista Chinês, garantir uma transição tranquila é crucial para assegurar não apenas o controle político sobre os cerca de 7 milhões de tibetanos do país, mas também a estabilidade em uma região com uma das fronteiras internacionais mais voláteis do país.

Os habitantes da Região Autônoma do Tibete têm nominalmente garantida alguma independência em áreas como educação e idioma como uma minoria étnica sob a lei chinesa.

Mas, na realidade, enquanto a China diz ter trazido maior desenvolvimento e turismo para a região, críticos afirmam que ela a governou com mão de ferro, mantendo uma censura rigorosa, controlando o ensino religioso e prendendo dissidentes.

Um dos elementos fundamentais da narrativa do próprio partido sobre a China moderna é que, em 1950, ela “libertou” o Tibete, então um país independente, do atraso econômico e do servilismo feudal. Se o processo de sucessão tibetana se mostrar confuso, ou se um potencial 15º dalai-lama não for um apoiador dócil de Pequim, essa versão da história será mais difícil de sustentar.

“Se houver dois dalai-lamas, isso dependerá de como as pessoas dentro do Tibete reagirão”, diz Tansen Sen, professor da Universidade de Nova York em Xangai. “No final, eles [o partido] serão capazes de convencer o povo tibetano?” Consultar os tibetanos, acrescenta ele, “não é algo em que eles tenham investido muito tempo”.

‘Um olhar de alegria em seu rosto’

O atual dalai-lama foi identificado em 1937, quatro anos após a morte de seu antecessor, na vila agrícola de Taktser, na atual província chinesa de Qinghai, então às margens da região tibetana de Amdo.

Um lama reencarnado pode ser localizado com base em visões de clérigos budistas seniores ou por meio de outras práticas rituais. Os seguidores do falecido visitarão certas crianças para ver se elas são atraídas por eles ou estão familiarizadas com os pertences do falecido.

“Quando um lama morre, normalmente os seguidores formam uma equipe de busca e vão para diferentes lugares em busca de uma criança com a idade certa”, explica Lhakdor. “E então perguntam se algo extraordinário ou incomum aconteceu na família, coisas assim.”

Após a morte do antecessor do atual dalai-lama em 1933, líderes do Tibete independente em Lhasa enviaram três equipes de busca. Uma delas percorreu Amdo com base em uma visão do regente tibetano na época, o Reting Rinpoche, no lago sagrado de Lhamo La-tso.

Ao ouvir falar de uma criança local de dois anos chamada Lhamo Thondup, a equipe visitou sua família. Eles ficaram impressionados quando o menino puxou um rosário que o líder da equipe estava usando no pescoço e o identificou corretamente por seu nome budista.

Em uma segunda visita, de acordo com o biógrafo do dalai-lama, Alexander Norman, eles foram recebidos pelo menino, que identificou corretamente objetos que haviam pertencido ao falecido 13º dalai-lama, incluindo um rosário, uma bengala, um pedaço de tecido e um tambor.

O dalai-lama deixou claro que a China não deve ter voz em sua reencarnação. Em comunicado divulgado em 2011, disse que, quando tiver “cerca de 90 anos”, consultará lamas de alto escalão, o público tibetano e outros seguidores e “reavaliará se a instituição do dalai-lama deve continuar ou não”.

Ele disse que era “particularmente inapropriado” para os comunistas chineses, que rejeitam explicitamente a ideia de vidas passadas e futuras, “interferirem no sistema de reencarnação e especialmente nas reencarnações do dalai-lama e dos panchen lamas”.

Os britânicos e os tibetanos traçaram a fronteira entre o Tibete e o que era então a Índia britânica no tratado de Simla de 1914. Hoje, Pequim contesta isso, argumentando que o Tibete estava sob controle chinês na época e não tinha o direito de negociar suas próprias fronteiras. A fronteira tem sido uma fonte de conflito duradouro. China e Índia lutaram uma guerra por ela em 1962 e têm se confrontado repetidamente ao longo da Linha de Controle Real, a fronteira disputada.

Nos últimos anos, a China tem investido de maneira robusta em infraestrutura no Tibete, expandindo aeroportos existentes e aprovando a construção de novos. Também inaugurou uma ferrovia de alta velocidade de 435 quilômetros até Lhasa.

Pequim promove essas obras como um meio de elevar os baixos padrões de vida em uma das regiões mais pobres do país, mas analistas afirmam que também têm objetivos militares estratégicos. “Acredito que isso não é apenas para a prosperidade do povo, mas também porque o Tibete é muito vasto, muito grande”, diz Qian Feng, diretor do departamento de pesquisa do Instituto de Estratégia Nacional da Universidade Tsinghua, em Pequim. “Usamos uma boa infraestrutura para proteger nossas fronteiras e não queremos que nenhum poder estrangeiro tome nosso território novamente.”

A perspectiva de ter dois dalai-lamas concorrentes baseados na China e na Índia ameaça aumentar as tensões entre os dois países.

Apesar da adesão do PC Chinês ao ateísmo —há oito anos, o líder Xi Jinping disse que os membros devem ser “ateus marxistas inabaláveis”—, a liderança chinesa tem se inserido constantemente nos assuntos da metempsicose, ou transmigração das almas.

No início da década de 1990, Pequim indicou que permitiria que os tibetanos usassem processos tradicionais para selecionar lamas reencarnados, reservando-se o direito de confirmá-los. Mas, em 1995, a postura do partido se endureceu. Naquele ano, depois que o dalai-lama escolheu um novo panchen lama, Pequim sequestrou o menino e sua família. Eles não foram vistos desde então, o que tem gerado pedidos regulares por sua libertação. Pequim instalou seu próprio panchen lama.

A máquina de propaganda da China reforçou suas alegações de que tem controle final sobre o processo de seleção. Robert Barnett, especialista em Tibete na Universidade de Londres, diz que há indicações de que o partido já está se preparando para o processo de transição. O governo regional teria criado um “comitê de busca preparatório” de 25 pessoas, provavelmente liderado pelo principal oficial do Tibete, o secretário do partido, como fez na década de 1990 para o panchen lama.

Tenzin Lekshay, porta-voz da Administração Tibetana Central em Dharamshala, diz que as autoridades chinesas estão preparando jovens lamas dentro do Tibete “para fazer parte da equipe de busca para recrutar ou nomear o próximo dalai-lama”.

O Sikyong das comunidades exiladas critica a ideia de “dois dalai-lamas”. Mesmo que a China tente controlar o processo, ele diz que, “quando e se” chegar a hora, os exilados escolherão o seu próprio. “A China gostaria de ter uma dor de cabeça vitalícia em suas mãos?”

noticia por : UOL

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