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Restrição a agrotóxico que mata abelhas é vitória da pesquisa científica, diz pesquisador

A restrição ao uso do inseticida fipronil, que dizima abelhas no Brasil, endossa a importância da pesquisa científica, avalia o biólogo Osmar Malaspina, professor e pesquisador do Campus de Rio Claro da Unesp (Universidade Estadual Paulista).

Malaspina estuda abelhas há 48 anos e coordenou um dos mais consistentes trabalhos de campo sobre mortes destes insetos, realizado com apicultores de São Paulo. Após coletar amostras por quase cinco anos, o estudo concluiu que o fipronil era responsável por 70% das mortandades.

A aplicação desse agrotóxico, capaz matar colmeias inteiras da noite para o dia, agora está proibida em folhas e flores em todo o território nacional, segundo determinação do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

“É uma vitória da pesquisa científica e da política pública. Parece pequena, mas é difícil conseguir algo assim. Abre caminhos para que a gente possa fazer o mesmo com outras substâncias perigosas”, afirma.

O Ibama manteve a aplicação em solo e no tratamento de sementes, mas avisou que também está analisando os efeitos dessas alternativas —o que é interpretado como espaço para o país banir o produto, como fizeram União Europeia e países como Colômbia e Costa Rica.

No Brasil, o inseticida está na formulação de 153 produtos, incluindo coleiras anti pulgas e carrapatos de pets e veneno doméstico contra formigas. No campo, sua aplicação é permitida em 23 culturas, entre elas as de larga escala, como soja e cana-de-açúcar.

Levantamento de perdas da apicultura, realizado pela Folha no ano passado, mostrou que a mobilização contra o fipronil já envolvia especialistas em oito estados.

“O fipronil é muito eficiente para matar insetos. A aplicação aérea, por exemplo, foi proibida pelo Ibama em 2012, mas até hoje tem produtor que desrespeita porque esse inseticida dá retorno”, explica. “Também identificamos que havia muito erro de aplicação. Agrotóxico vai para mão de gente sem treinamento”.

Leia a seguir trechos da entrevista de Malaspina concedeu à Folha.

O sr. é uma das referências no estudo de abelhas. Como recebeu a restrição ao fipronil?

É uma vitória da pesquisa científica e da política pública. Parece pequena, mas é difícil conseguir algo assim. Abre caminhos para que a gente possa fazer o mesmo com outras substâncias perigosas. A decisão é temporária, veio como cautelar, mas entendemos que estão sinalizando que ela vai ser definitiva lá na frente.

O sr. não considerou o período de análise muito longo? Foram 12 anos.

Eu entendo a posição do Ibama. Ele precisa apresentar um motivo consistente, de caráter ambiental, para chamar a reavaliação de um produto. É necessário reunir provas sobre o efeito nocivo. Nesse caso, era preciso ficar bem documentado que o fipronil é responsável pela maioria das mortes das abelhas. Só com a segurança dos dados científicos é possível questionar o uso.

Vamos lembrar que as empresas têm toda uma estrutura de defesa. Se a decisão do Ibama não for bem embasada, as empresas conseguem uma liminar para derrubar na semana seguinte.

De fato, a primeira instrução normativa do Ibama sobre a questão é de 2012. Foi ela que chamou a reavaliação do fipronil e dos neonicotinoides [associados a morte mais lenta de abelhas]. Uma reavaliação do tipo precisa de no mínimo dois anos, mas pode se estender por mais tempo a depender da complexidade,

O nosso trabalho nesse sentido começou em 2013 e levou quase cinco anos. Outro pesquisador do Rio Grande do Norte gastou tempo similar [referência a estudo da Universidade Federal Rural do Semiárido, coordenado pelo pesquisador Dayson Castilhos, que avaliou o efeito de agrotóxicos sobre abelhas]. A Defesa Sanitária do Estado de São Paulo faz um levantamento consistente desde 2021.

Essas e outras pesquisas confirmaram a letalidade do fipronil e deram suporte para tomada de decisão do Ibama.

Quando o sr. começou a estudar o efeito de produtos tóxicos sobre abelhas?

No meu mestrado, na década de 1970, fiz um dos primeiros estudos sobre o efeito de agrotóxico em abelhas, com o DDT [utilizado desde a Segunda Guerra, só foi proibido no Brasil em 1985 por causar doenças neurológicas, respiratórias e cardiovasculares em humanos].

Naquela época, porém, mortalidade em abelhas por produtos químicos não era comum, e não fui adiante. Em 2005, no entanto, começaram os registros de mortandade em São Paulo. Minha experiência nisso era de 0,0001%, mas estava entre poucos com alguma noção, e fui procurado.

O sr. se recorda qual foi a mortandade que ligou o alerta em relação aos agrotóxicos?

Foi uma em Boa Esperança, perto de Araraquara, em 2008. O dono do apiário me ligou. Ele ficava a 800 metros de uma cultura de citros. Na quarta-feira, um avião passou pulverizando. Na quinta, todas as abelhas estavam mortas. Ele queria saber como proceder. Expliquei que precisava fazer o boletim de ocorrência, coletar abelhas e encaminhar para análise em laboratório. Foi complicado. Os laboratórios brasileiros não tinham experiência para analisar agrotóxico em abelhas. Precisaram buscar metodologia no exterior.

Depois disso, veio uma série de outras mortandades. A gente dizia que era agrotóxico, e as indústrias negavam a correlação.

Qual era o argumento delas?

Falavam que era doença. Existe um tipo de ácaro chamado varroa que é muito letal a abelhas europeias e americanas. Em 1978, ele foi identificado no Brasil. Ocorre que a abelha brasileira é uma mistura de abelha europeia com africana, e esse híbrido é muito resistente a esse ácaro.

Virou um impasse. As empresas insistiam no varroa, e a gente, do nosso lado, que não existia isso de esse ácaro dizimar colmeias no Brasil. A única coisa capaz de acabar com uma colmeia em 24 horas seria um inseticida.

Quando ficou provado que era agrotóxico?

Quando os estudos foram intensificados. No nosso caso, em São Paulo, a gente fez um relatório de mapeamento chamado Colmeia Viva. Montamos o projeto, e a indústria bancou, via Sindiveg (Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal).

Fizemos um acordo informal. Se fosse o ácaro, eu iria a público dizer que os inseticidas não eram culpados. Mas se fosse, as indústrias teriam de admitir.

Começamos em 2013. Divulgamos um 0800 e contratamos uma empresa de coleta e análise, para não haver divergências. Essa terceirizada levava as amostras para um laboratório especializado em identificar agrotóxico.

Fizemos 240 visitas em locais onde ocorreram mortandades. Nem todas renderam amostras. Às vezes, o apicultor demorava para notificar, e a amostra perdia a validade. Até 2017, conseguimos material de 130 ocorrências. As análises mostraram que 85 tinham agrotóxico, sendo que 70% era fipronil.

E qual foi a reação das indústrias?

Havia um comitê de avaliação, com pesquisadores e representantes das empresas. Não tinha como refutar os laudos. Diante do resultado, ficou apenas a pergunta: o que fazer?

E qual foi a resposta?

O ideal era proibir. Como pesquisador, acredito que o fipronil tinha de ser retirado do mercado. A molécula é muito agressiva. Mas o agronegócio é forte. Fica difícil. Muitos cientistas dedicados a abelhas ficaram bravos comigo por eu não ter simplesmente defendido a proibição.

Para ser prático, avaliei que seria melhor juntar forças com as indústrias para buscar alternativas que evitassem as mortandades.

Uma delas foi defender a coexistência. Mostramos as vantagens para os produtores trabalharem com abelhas. Vários estados adotaram.

Investimento na conscientização. Muitas amostras vieram de apiários próximos a culturas que não podiam aplicar fipronil. Ficamos com a suspeita de que estavam misturando. O fipronil é muito eficiente para matar insetos. A aplicação aérea, por exemplo, foi proibida pelo Ibama em 2012, mas até hoje tem produtor que desrespeita porque esse inseticida dá retorno.

Também identificamos que havia muito erro de aplicação. Agrotóxico vai para mão de gente sem treinamento. Criamos treinamento para aplicação em todo o Brasil. As empresas também passaram a exigir o treinamento. Hoje muitos proprietários usam drone.

Isso não acabou com o problema, mas melhorou. Agora, a decisão do Ibama dá um passo a mais.

RAIO-X

Osmar Malaspina, 75

Graduado em Ciências Biológicas, tem mestrado e doutorado em Ciências Biológicas, focados em Zoologia, pelo Instituto de Biociências de Rio Claro da Unesp (Universidade Estadual Paulista). Professor sênior do Departamento de Biologia Geral e Aplicada do Instituto de Biociências da Unesp de Rio Claro. Atua na coordenação de grupos de pesquisa sobre efeitos tóxicos em abelhas junto ao ao Leca (Laboratório de Ecotoxicologia e Conservação de Abelhas). Também desenvolve pesquisas sobre o tema junto a Comissão Internacional para as Relações Planta-Polinizador. Atua na formação de recursos humanos nas áreas de Zoologia Aplicada e em Biologia Celular dedicados à conservação de polinizadores

noticia por : UOL

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