MUNDO

Quis quebrar todos os espelhos

Era o dia do espetáculo de balé da minha filha e eu estava fazendo seu coque. Estávamos no banheiro da minha casa, em frente ao espelho, correndo contra o tempo: em 15 minutos precisávamos sair para o teatro. O rosto dela já estava pronto, a maquiagem de palco de uma criança, só um brilho nos lábios, um pouquinho de sombra. Eu passava gel na franja arredia, tentando assentá-la no todo.

Fitei o resultado: não estava perfeito, mas dava para o gasto. Vamos? Estou feia, me disse, sem arredar as sapatilhas do chão. Argumentei que estava linda, mas ela parecia não ouvir. Alisando a franja endurecida com gel, com olhos fixos no espelho, começou a repetir que estava feia, que não ia sair daquele jeito.

Propus refazer o coque. O relógio entre os cremes da prateleira indicava que ainda tínhamos alguns minutos. Ela mirou os ponteiros. Seus olhos se encheram de lágrimas. Nem adianta tentar, mãe. Não vai dar certo. Estou feia porque sou feia.

Olhei para o seu rosto pelo espelho. Bonito como o de toda criança. A pele de quem ainda não sabe o que é imposto de renda. As bochechas de quem não precisa de blush. Seus lábios, tão bem desenhados, tremiam, prestes a rebentar no choro. Aquele peito que arfava dentro do colant havia sido inflado por uma mãe feminista, por uma tia feminista, por livros que lhe ensinaram a ter orgulho do seu cabelo, por camisetas que lhe disseram para lutar como outras garotas, por professoras que lhe disseram que seu corpo era lindo do jeito que era. Onde tinha ido parar tudo aquilo?

Ao lado dela, vi meu reflexo. E no meu rosto, também vi a garota que fui. Com vergonha do nariz grande. Com vergonha dos seios grandes. Jantando gelatina diet para ficar mais magra. Me poupando do sol porque preferiam as bailarinas mais brancas. Na parte de baixo do espelho, vi os pés da minha mãe, sempre apertados nos seus sapatos de estilo gueixa. Vi a minha vó, com sua testa deformada pelo excesso de plásticas. E a minha outra avó, que nunca se deu ao luxo da vaidade, que nunca se deu ao luxo de cuidar de si mesma.

Cinco mulheres e nenhuma que conseguisse se mirar sem algum desconforto. Sem ver algum problema. Que ilusão pensar que em uma geração eu conseguiria desconstruir séculos de padrões de beleza tão entranhados dentro de nós. Como diria Virginia Woolf, é muito mais difícil destruir o impalpável do que o real.

Era contra milhões de olhos invisíveis e julgamentos inaudíveis que eu precisava lutar naquele momento, minha única arma: um grampo de cabelos. Porque não adiantava eu argumentar. Não adiantava projetar na cortina do chuveiro um Power Point. Fazer um simpósio sobre o mito da beleza. Ali estava uma criança. Indefesa frente aos mecanismos que desconhece mas que lhe atingem da mesma maneira. Chorando. Arrancando os grampos. As lágrimas manchando de sombra azul as suas bochechas.

Dei a ela a única coisa que todo mundo quer, de frente para o espelho, de costas para o espelho: amor. Na forma de um chumaço de algodão que limpou suas bochechas. Na forma de um novo coque, tão imperfeito quanto o anterior, mas quem se importava? Essa história nunca foi e nunca será sobre cabelos.


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noticia por : UOL

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