MUNDO

Quem é Cao Fei, artista que usa ficção científica para falar de uma China distópica

Um pequeno cinema no subúrbio de Pequim, na China, é centro social e cultural dos operários do distrito de Jiuxianqiao. A década é a de 1950 e a região, até pouco tempo rural, agora é um conglomerado de fábricas.

Ali acontecem festas e momentos de descontração pós-expediente, além, é claro, da exibição de filmes. Um soldado soviético se oferece para nos guiar pelo local. Afinal, foi a União Soviética que apoiou o desenvolvimento industrial da área.

Se não víssemos os operários chineses pelo passeio e os cartazes com letras em mandarim, diríamos que Hongxia, o cinema, está localizado em Moscou –pelos seus espaços amplos, com pouco mobiliário em metal e madeira e as paredes meio pintadas em verde claro. Pouco adiante, vemos uma russa e um chinês dando um beijo.

Mas estamos em 2023, e o que vemos não existe mais. O passeio narrado é possível graças a óculos de realidade virtual, e as imagens foram reconstruídas pela artista chinesa Cao Fei, que inaugura “O Futuro Não é um Sonho”, sua primeira exposição na América Latina, neste sábado, dia 2, na Pina Contemporânea, em São Paulo.

Hongxia, o cinema e centro cultural, será demolido no próximo mês. Ele estava abandonado até cinco anos atrás, antes de Cao Fei ocupá-lo para usá-lo como ateliê. Mas, com a intensa especulação imobiliária que acomete Pequim, o terreno dará lugar a mais arranha-céus.

Refletir sobre as intensas mudanças sociais causadas pelo avanço da tecnologia é tema central no trabalho da artista chinesa, que mistura cinema e arte digital para criar suas obras.

Em “The Eternal Wave”, de 2020, em determinado momento, um astronauta sai de dentro da pia da copa de Hongxia, quebrando a fantasia de retorno ao passado. O personagem é de outro filme seu, “Nova”, de 2019.

No longa, um cientista da computação apoiado por especialistas soviéticos está desenvolvendo um programa que transforma humanos em um dispositivo digital para coletar dados de outras pessoas. O especialista acaba envolvendo seu filho no projeto, transportando-o para uma realidade virtual. Mas o garoto, vestido com trajes especiais que lembram os de um astronauta, fica preso no metaverso.

A artista chama a estética do filme de “retrô sci-fi”. A trama ocorre no passado, com cenários que poderiam ser das décadas de 1970, mas a iluminação e fotografia são futuristas, assim como o traje do protagonista. “Eu gosto de mostrar as contradições pela mistura de estéticas”, afirma Fei.

A obra também explora a influência da Rússia sobre a China, tanto econômica quanto culturalmente, visto que a ficção científica chinesa se inspirou na de seus contemporâneos russos. No caso de “The Eternal Wave”, quando tiramos os óculos de realidade virtual, nos deparamos com a reprodução do cinema Hongxia, que ocupa uma sala inteira da Pina Contemporânea.

A intensidade e rapidez com que a China se transforma é tema que atravessa todos os trabalhos de Fei. Em um dos primeiros, apresentado na Bienal de Veneza em 2007, a artista construiu uma cidade chinesa moderna no Second Life —espécie de rede social que permite recriar mundos virtuais em 3D.

Monumentos e signos chineses se misturam a símbolos do capitalismo industrial, e o resultado é uma verdadeira salada russa, com arranha-céus e fábricas convivendo com pandas, enquanto uma estátua de Mao Tse-Tung, líder comunista, boia sobre o mar. A mensagem é a contradição que carrega uma sociedade tradicionalista que, ao mesmo tempo, tem uma das economias que mais cresce no mundo.

Ao lado, em uma tela, “Duotopia”, de 2022, é a edição atualizada da cidade contemporânea no metaverso. A exibida na Pinacoteca é apenas um protótipo, visto que Fei pretende criar um aplicativo pelo qual o público poderá acessar a metrópole que batizou como “metaverso chinês”.

Apesar das discussões em torno da realidade virtual estarem em alta, a grande maioria da população na China não sabe do que se trata. É o que mostra o documentário “Meta-mentary”, também na exposição. Nele, Fei sai pelas ruas de Pequim questionando cidadãos comuns sobre o que acham do metaverso. Muitos respondem que só esperam não perder seus empregos.

A reação é de uma sociedade que precisa se adequar a automatização exponencial nos ambientes de trabalho. Em “Whose Utopia”, algo como “Utopia de Quem”, de 2006, Cao Fei sai pelas fábricas no Delta do Rio das Pérolas perguntando aos trabalhadores quais são seus sonhos.

“É nessa região onde se produzem todos esses produtinhos chineses que o mundo inteiro consome, inclusive o Brasil”, explica a curadora Pollyana Quintella. Então, Fei grava os operários performando os seus sonhos dentro das fábricas onde trabalham. Um dos resultados, por exemplo, é uma bailarina que dança em meio a um armazém lotado de máquinas e caixas.

“No final da década de 1990, a Sony investiu em um marketing intenso para o uso de câmeras digitais, tanto para viagens quanto para registrar o cotidiano. Eu comecei aí”, diz Fei, sobre a intrínseca relação do seu trabalho com o vídeo.

Mas a artista não gosta de mostrar seus filmes sem transformar o ambiente onde a tela está em uma extensão do que é visto. Na Pinacoteca, a sala onde “Whose Utopia” é transmitido se transformou em um galpão, com caixas e grades espalhadas por todo lado.

“Eu acho que a China e o Brasil têm muito em comum. Por exemplo, as contradições sociais entre ricos e pobres. Na América do Sul vocês também têm essas enormes fábricas” diz Fei. E então pondera: “Talvez com a diferença da tecnologia. A China é a fábrica do mundo.”

noticia por : UOL

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