MUNDO

Por que amamos tanto as crianças em nossas vidas?

Alice chegou quando a vida era caos. Uma pandemia inédita nos devastava. Quatorze de setembro de 2020. Nascer depois dos anos 2000 é bastante curioso. Nascer em 2020, no meio de uma hecatombe sanitária, é vinte vezes mais curioso. O mundo de ponta-cabeça e Alice desembarcando.

Fico sempre muito emocionada com a chegada de sobrinhos e sobrinhas. Um pouco do espírito das pessoas que cresceram comigo está nesses bebês. Alice, a décima sobrinha.

Peguei Alice no colo e ela não chorou, o que considerei uma imensa conquista. Paulo chorou. Antonio chorou. Estela abriu um berreiro. Francisco chorou. Bruna chorou. Marcelo não chorou mas regurgitou. Mel chorou. Lari e Carol berraram o berro mais agudo do universo.

Alice não chorou; esse foi o tamanho da minha conquista.

Alice chegou encarando um mundo de pessoas mascaradas. Eu sorria, mas ela não via.

Que amor é esse que sentimos por uma criança que não conhecemos? Era a primeira vez que nos encontrávamos e eu já a amava. Com aquela criança minúscula no colo pensei em seu futuro desejando que Alice fosse feliz, que amasse, que fosse amada, que tivesse saúde, que nunca sofresse, que dançasse, que sorrisse.

Um dia, alguém nos amou instantaneamente e nos desejou coisas parecidas. E olha onde estamos agora.

Não existe vida sem dor, sem tristeza, sem sofrimento. O certo seria desejar que Alice estivesse sempre amparada por uma teia de afeto quando a vida apertasse. Nascer sendo desejada e amada já é nascer de forma bastante privilegiada.

Meu irmão e minha cunhada perguntaram se eu seria a madrinha. Claro que sim, respondi. Ela não chorou, vocês viram? Ninguém ligou e minha mãe tirou Alice do meu colo.

Uma criança é uma página em branco. Alice não demorou a começar a rabiscar a sua. Música e dança. Alice ama as duas coisas. Ainda muito pequenina, fiquei uma manhã sozinha com ela enquanto o resto da família ia passear. Alice começou a resmungar, ameaçou chorar, e eu coloquei Só Pra Contrariar na caixinha. Ela sorriu. Deixei no “repetir” e ficamos dançando na grama até todos voltarem.

Alice me chama de dinda. É a única dos três sobrinhos-afilhados. Tem dias que está de bom humor, me abraça, me beija, me pega pela mão. Tem dias que está de mau humor e não quer dar beijo nem conversar. Eu fico olhando de longe. De onde vem tanto amor?

Quem vai ser Alice? Que mundo encontrará pela frente? Que tristezas superará? O que gostará de fazer? O que posso fazer para ampará-la?

Por que amamos tanto as crianças em nossas vidas? Por que são um pouco de nós mesmos? Por que carregam com elas o futuro? Por que nos continuarão? Que amor é esse e de onde ele vem?

Toda criança é uma página em branco. Em Higienópolis ou em Paraisópolis. Toda criança traz com ela a abertura para novas possibilidades de futuro. Por que amar apenas as nossas desse jeito visceral? Por que não amar todas as crianças como se fossem Alice? O que nos limita se o amor, assim como o fogo, cresce quando compartilhado?

Volta e meia me pego pensando em algum sobrinho, querendo saber por onde andará, que perigos estará enfrentando, se está feliz, triste, ansioso, angustiado… O desejo de que nada de ruim jamais aconteça. Mas e as outras crianças? As que têm fome, e não têm abrigo ou um lar. Por que o sofrimento delas não me consome como o de um sobrinho ou de uma sobrinha?

O que nos limita? O que nos anestesia?

Toda criança é o futuro. Toda criança pode nos redimir. Toda criança merece uma vida decente.

Amar todas as crianças como se fossem Alice. Porque, no fundo, elas são.

Com este último texto, a coluna Nosso Estranho Amor deixa de ser publicada.


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noticia por : UOL

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