O escritor Paul Auster, morto nesta terça, tinha 14 anos quando, durante uma excursão escolar em que caminhava com seus amigos por uma trilha sob uma tempestade, ouviu um trovão: um fio de eletricidade caiu sobre o garoto que ia à sua frente, que morreu na hora.
Não foi um incidente qualquer. “Não há um dia em que não pense nisso, não há um livro que eu escreva em que o efeito que o episódio teve em mim não se faça sentir”, contou o escritor à Folha, em uma entrevista realizada em 2017, durante a Feira do Livro de Guadalajara.
Para ele, foi uma chamada à consciência de que tudo era possível a qualquer momento. “Nosso chão pode desaparecer a qualquer hora, não é uma coisa firme. Como não vivi nenhuma guerra, o episódio do colega morto na minha frente foi algo de proporção enorme, pois percebi que minha confortável vida americana nos anos 1950 e 1960 não tinha me preparado para isso. De certo modo, comecei a crescer e a escrever a partir daí.”
A conversa tinha se desviado um pouco do que o levava até o México, a medalha de honra Carlos Fuentes que foi entregue ao autor da “Trilogia de Nova York” na ocasião, e enveredava por temas que sempre o intrigaram e que eram os mais recorrentes em sua literatura: as coincidências, o destino, as fatalidades.
Auster era muito seguro de que eventos acidentais e dramáticos de sua vida se viam refletidos em sua literatura. E seria assim também depois, com a morte por infarto do pai, a trágica morte dupla de sua neta e de seu filho, David, e sua separação da escritora Lydia Davis.
O escritor costumava contar outra casualidade que o havia marcado: um espetáculo de dança que o destravou para a ficção. Tinha 30 anos e uma frustração, carregava um caderno cheio de histórias rascunhadas desde a adolescência, mas que nunca tinha conseguido desenvolver. Escrevia poesia e ensaios, mas não conseguia abraçar os romances.
Segundo ele, o espetáculo abriu uma porta em seu interior. Voltou para casa e começou a escrever um longo texto em prosa madrugada adentro. Na manhã seguinte, recebeu a notícia da morte de seu pai. “Foi aí que me tornei escritor”, contou Auster, na mesma entrevista. Semanas depois, começaria a escrever “A Invenção da Solidão”, uma de suas obras mais celebradas.
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Auster esteve na segunda edição da Festa Literária Internacional de Paraty, em 2004, com seus amigos britânicos Martin Amis e Ian McEwan. Na noite anterior à viagem para a costa fluminense, os trio deu uma entrevista à Folha tomando drinques num hotel paulistano.
O tradicional “pingue-pongue” logo ficou caótico, quando passaram a fazer perguntas entre eles mesmos. Se diziam preocupados com a situação no planeta, a guerra do Afeganistão, o terrorismo islâmico e as respostas do Ocidente, as sequelas do ataque às Torres Gêmeas. Os três concordavam que era urgente escreverem mais sobre política e refletir, por meio de suas literaturas, sobre a polarização mundial.
Auster disse: “As eleições nos EUA, em 2000, me deixaram muito deprimido, me senti como se estivesse vivendo o período mais sombrio da minha vida. Hoje temos um governo ilegítimo que está fazendo coisas ilegítimas”. O escritor havia se engajado na campanha do democrata Al Gore contra o republicano George Bush. Frustrado com a vitória deste, dizia que a única solução para momentos trágicos era tentar escrever comédias.
Ao final, de bom humor, disse aos jornalistas: “Adorei a entrevista em trio, agora só quero fazer assim daqui por diante”.
noticia por : UOL