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Passado e presente juntos: após 50 anos, ex-exilados brasileiros retornam ao Estádio Nacional do Chile

Esta reportagem faz parte da série especial de Opera Mundi com relatos de brasileiros que viveram o fim do governo Salvador Allende e início da ditadura Augusto Pinochet, episódio que completa 50 anos em 11 de setembro de 2023. 

Opera Mundi acompanhou a Caravana Viva Chile, que reuniu brasileiros visitou o Chile para presenciar os eventos que recordaram os 50 anos do golpe de 1973, ao Estádio Nacional, em Santiago, nesta segunda-feira (11/09). 

Passado. O Estádio Nacional do Chile tomado pelos militares, transformado em campo de concentração, recebia milhares de presos políticos, muitos deles jovens brasileiros e brasileiras, as primeiras vítimas da ditadura que teve início naquele fatídico dia 11 de setembro de 1973.

Presente. O Estádio Nacional do Chile, nesta segunda-feira, 11 de setembro de 2023, exatos 50 anos depois, recebeu um grupo de dezenas de brasileiros e brasileiras. Ex-exilados do Brasil que retornaram ao país andino para revisitar um dos cenários que marcou as suas vidas para sempre.


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O regresso ao maior recinto esportivo chileno foi um dos eventos mais emotivos da Caravana Viva Chile. A imagem do concreto frio e envelhecido das galerias do estádio, as cadeiras da arquibancada, a pista de atletismo para onde eram levados aqueles que iriam sair, para a liberdade ou para a tortura e execução. Tudo remetia a um momento que era preciso recuperar, e convidando a um processo muito particular para cada uma daquelas pessoas que viveram o horror da ditadura pinochetista.

Uma das organizadoras da Caravana, Angelina Teixeira passou cerca de um mês no Estádio Nacional. Segundo ela, o retorno ao lugar onde conheceu a esperança do projeto socialista de Salvador Allende e o pesadelo do golpe de Estado chileno só foi possível de forma coletiva. “Eu não sei se conseguiria vir sozinha para ter essa experiência. Ao estar com um grupo de amigos, pessoas que também estiveram aqui, sabem o que aconteceu, é mais fácil”, comentou a Opera Mundi.

Angelina Teixeira foi uma das detentas no Estádio Nacional no Chile e voltou ao local 50 anos depois / Victor Farinelli

A visita guiada ao estádio começou em um local inaugurado há poucos anos, uma pequena estrutura que serve de mostra para render homenagem especial às mulheres que estiveram naquele campo de concentração. Na entrada havia um painel com o nome de todas as prisioneiras que tiveram seu nome registrado. O de Angelina estava junto ao de 27 brasileiras.

Em outro painel, no interior do salão, havia fotos de algumas das presas, incluindo de uma brasileira: a socióloga Anatailde de Paula Crêspo – que faleceu recentemente, em junho de 2022.

Outro local chamativo da mostra reproduz os banheiros do estádio, e dentro dele estão expostos poemas ou mensagens que foram escritos por presas políticas que passaram por aquele ou por outros centros de tortura da ditadura chilena. Em um deles está o de Viviana Herrera Fariña, que diz: “ontem eu te vi sorrindo / e as grades se quebraram / o sol invadiu os meus olhos / e me percorreu inteira / a primavera se impregnou pelos corredores / rompendo portas / e em tuas gargalhadas / os muros se fizeram pó / os cadeados se tornaram sinos que cantavam / o nascimento da liberdade / sobre os escombros do cárcere”.

Exposição do poema de  Viviana Herrera Fariña / Victor Farinelli

Torturadores brasileiros

Em seguida, os membros da Caravana foram levados ao Estádio Nacional, onde reencontraram, homens e mulheres, o recinto onde viveram dias – em alguns casos, meses – de dor e angústia.

Iedo Fontes apontou o setor do estádio onde ficaram ele e outros companheiros. “Nós ficamos naquela parte ali (apontado para o setor da arquibancada Leste, que fica voltada para onde está a Cordilheira dos Andes), que está descoberta. No outro lado, onde tem a marquise, ficava a administração do Estádio, que era conformada só por militares, e era ali que se praticavam as torturas. Ninguém queria ir para lá”, recordou.

“Quando vinham os prisioneiros encapuzados, trazidos de outro setor do Estádio, nós sabíamos que eram aqueles que haviam sido torturados, alguns chegavam em um estado lastimável”, acrescenta. Iedo lembra que havia militares brasileiros no local, ajudando e muitas vezes ensinando os chilenos a torturar. Porém, no seu caso, essa presença acabou sendo favorável, graças a uma casualidade.

“Havia uma comissão que registrava os nossos nomes, e os presos brasileiros eram levados aos militares brasileiros que estavam lá, para que o interrogatório fosse em português. O sujeito primeiro perguntou meu nome, depois se eu tinha alguma filiação política, e no final queria saber se eu tinha vindo de outro estádio (porque outros estádios menores da cidade de Santiago e região metropolitana também estavam sendo usados como centros de detenção). Eu fiquei alguns segundos sem saber o que dizer e depois falei ‘eu vim da Paraíba’, e ele me responde, ‘ôxe, eu também, me dá um abraço aqui conterrâneo’, e durante o abraço eu pensei ‘pronto, sobrevivi’”, disse.

Mas o caso de Iedo foi uma exceção. Em geral, as torturas eram mais intensas aos brasileiros, até porque alguns deles eram conhecidos dos conterrâneos militares que estavam no Estádio Nacional.

A jornalista Solange Bastos, que esteve presa durante quase um mês, conta que “os soldados chilenos que estavam aqui eram uns garotos caipiras do interior, não sabiam nada de tortura. O Exército decidiu mandar os oficiais aqui de Santiago, mais experientes, para as ações no interior do país, e os do interior foram trazidos para a capital, para diminuir a chance de algum deles ter que lidar com algum parente ou conhecido que estava preso”.

“Os (militares) brasileiros já tinham a experiência de uma ditadura que estava vigente a quase 10 anos. Eles ensinaram de tudo para os chilenos: pau-de-arara, choque elétrico, várias modalidades de tortura”, recordou ela.

Solange Bastos (dir.) permaneceu presa durante quase um mês no Estádio Nacional / Victor Farinelli

Pão e frutas, lentilhas e fome

Solange também lembra que a alimentação oferecida às mulheres presas era um pouco melhor que a dedicada aos homens.

“Nós às vezes recebíamos frutas, um pão em melhor estado, não era grande coisa na verdade, mas era muito melhor que a dos homens. Nós sabíamos disso e as vezes guardávamos algumas coisas, escondíamos entre as roupas e quando surgia uma oportunidade alguma de nós escapava entre as galerias e tentava entregar a eles, porque a situação do lado de lá era realmente terrível. Eles chegaram a passar fome realmente”, lembrou a jornalista à reportagem.

noticia por : UOL

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