MUNDO

Os CDF também choram

Cartolina. Papel almaço. Pasta polionda. Valei-me, Nossa Senhora da Canetinha Pilot, contra toda a angústia dos deveres escolares de outrora. A lista de material dos meus piores pesadelos, agora revista e atualizada enquanto slides, layouts, spreadsheets e workflows coloridinhos.

“A que horas acaba essa reunião?”, penso. Contudo, é preciso que mais um pitaco seja dado em forma de “note”. Entram os gráficos de pizza, vai embora a vontade de viver.

Até que uma epifania laboral me arrebata, incitada talvez pelo café dormido e os biscoitos já murchos: tudo bem ser a pessoa mais encostada do grupo. Uma espécie de Bartlebly, o escrivão dos novos tempos, subindo a hasthag #prefironão. Consciente de que, às vezes, um bom plano de carreira é só colaborar com emoji de palminha.

Antes que revoguem minha carteirinha de CDF, assumo já ter sido do pior tipo. Letra linda, cadernos com pelo menos três cores diferentes de caneta, boletim azul de cabo a rabo. Colar, nunca. Chegar depois do sinal, jamais. Ai de quem devolvesse com orelha a minha apostila de OSPB! Impecável e irrepreensível, eu era insuportável —e vivia exausta.

Na faculdade, a mesma índole tenebrosamente perfeccionista dos que se esforçam demais no trabalho coletivo. Sendo que, na hora do rachuncho, a grana da chopada raramente custeava todas as obrigações. Conclusão: há quem até hoje me deva, só em xerox no centro acadêmico, o preço de um Corsa 2002 atualizado pela tabela da Fipe.

No entanto, quem pediu para sermos assim? Tão Nadia Comaneci de nós mesmos, em busca do 10 absoluto? Ninguém. “Imagina, talento e esforço sempre vencem!”. Tá, mas é preciso cruzar tão esbaforidamente a linha de chegada? Peraí, vamos beber uma aguinha antes. Todo mundo sabe que, pelas leis do mercado, muitas vezes basta ser o genro medíocre do chefe para agradar. Sim, aquele que tem voz bonita e dá a impressão de falar coisa com coisa.

Temos séries a maratonar, pilhas de bons livros a ler. Pets e seres humanos a serem afofados quando chegarmos em casa. E essa medalha de honra ao mérito no peito, conquistada à base de muito suor e semancol, que é poder espichar as pernas e pensar: fiz o que deu e foi bom o bastante.

Diante dos powerpoints alheios, faço não só minha parte, mas também um minuto de silêncio em respeito aos lápis e cartuchos de tinta que já zerei ao longo do caminho. Daí boto a bolsa no ombro, envio o emoji de palminha e vou embora de alma leve, pronta para tudo que me dê na telha. Inclusive nada.


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noticia por : UOL

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