O governo dos EUA convenceu seus cidadãos de que os bombardeios de Hiroshima e, três dias depois, de Nagasaki, provocaram a rendição do Japão. Mas, com base em arquivos e outras evidências, fica claro que, mais do que as bombas nucleares, a declaração de guerra da União Soviética contra o Japão foi o que levou à rendição do país. Os arquivos também mostraram que o número de “um milhão de vidas americanas salvas” devido a Hiroshima e Nagasaki, uma vez que a invasão do Japão foi evitada, não tinha base. Foi um número criado inteiramente para fins de propaganda.
Embora esses números tenham sido apresentados ao povo americano como cálculos sérios, o que foi completamente censurado foram as fotos reais das vítimas das duas bombas. A única foto disponível do bombardeio de Hiroshima – a nuvem em forma de cogumelo – foi tirada pelo piloto do avião bombardeiro Enola Gay. Mesmo quando algumas fotografias de Hiroshima e Nagasaki foram divulgadas meses depois dos bombardeios nucleares, elas mostravam apenas prédios destruídos, mas nenhuma imagem de seres humanos.
Os Estados Unidos, que se regozijavam com a vitória sobre o Japão, não queriam que ela fosse prejudicada pelas imagens do horror da bomba nuclear. Os Estados Unidos desprezaram as pessoas que estavam morrendo de uma doença misteriosa, que o governo norte-americano sabia ser a síndrome da radiação, como propaganda dos japoneses. Para citar o general Leslie Groves, que liderou o Projeto Manhattan, essas eram as “Fábulas de Tóquio“. Foram necessários sete anos para que o número de mortos fosse visível, e somente depois de os Estados Unidos encerrarem a ocupação do Japão. Mesmo assim, havia apenas algumas fotos, já que o Japão ainda estava cooperando com os Estados Unidos para esconder o horror da bomba nuclear. O relato visual completo do que aconteceu em Hiroshima teve de esperar até os anos 60: as fotos de pessoas vaporizadas, deixando apenas uma sombra na superfície da pedra em que estavam sentadas quando a bomba explodiu, sobreviventes com as peles penduradas em seus corpos, pessoas morrendo de envenenamento por radiação.
A outra parte da bomba nuclear foi a atuação dos cientistas. Eles se tornaram os heróis que encurtaram a guerra e salvaram um milhão de vidas americanas. Nessa mitificação, a bomba nuclear foi convertida de um grande esforço em escala industrial para uma fórmula secreta descoberta por alguns físicos que deu aos Estados Unidos um enorme poder na era pós-guerra. Foi isso que fez de Oppenheimer um herói para o povo norte-americano. Ele era um símbolo da comunidade científica e de seus poderes divinos. E também o alvo de pessoas como Teller, que mais tarde se uniu a outros para derrubar Oppenheimer.
Mas se Oppenheimer era um herói há apenas alguns anos, como eles foram capazes de sepultá-lo?
É difícil conceber hoje que os Estados Unidos tivessem um forte movimento de esquerda antes da Segunda Guerra Mundial. Além da presença dos comunistas nos movimentos de trabalhadores, o mundo da intelectualidade – literatura, cinema e físicos – também contava com uma forte presença comunista – como pode ser visto no filme de Oppenheimer. A ideia de que a ciência e a tecnologia podem ser planejadas, como Bernal argumentava no Reino Unido, e que devem ser usadas para o bem público, foi adotada pelos cientistas. É por isso que os físicos, naquela época na vanguarda das ciências de ponta – relatividade, mecânica quântica – também estavam na vanguarda dos debates sociais e políticos na ciência e sobre a ciência.
É esse mundo da ciência, uma visão crítica do mundo, que colidiu com o novo mundo em que os Estados Unidos deveriam ser a nação excepcional e o único hegemon global. Qualquer enfraquecimento dessa hegemonia só poderia acontecer porque algumas pessoas, traidoras desta nação, entregaram “nossos” segredos nacionais. Qualquer desenvolvimento em qualquer outro lugar só poderia ser resultado de roubo, e nada mais. Essa campanha também foi ajudada pela crença de que a bomba atômica era o resultado de algumas equações que os cientistas haviam descoberto e, portanto, poderiam ser facilmente vazadas para os inimigos.
Essa foi a gênese da era macartista, uma guerra contra a comunidade artística, acadêmica e científica dos EUA e de busca por espiões escondidos debaixo das camas. O complexo industrial militar estava nascendo nos Estados Unidos e logo assumiu o controle do establishment científico. Eram os militares e o orçamento de energia – energia nuclear – que, a partir de então, determinariam o destino dos cientistas e de seus financiamentos. Oppenheimer precisava ser punido como um exemplo para os outros. Os cientistas não deveriam se colocar contra os deuses do complexo industrial militar e sua visão de dominação mundial.
A perda da credibilidade de Oppenheimer serviu a outro propósito. Foi uma lição para a comunidade científica de que, no caso de uma transgressão ao estado de segurança, ninguém era grandioso demais. Embora os Rosenbergs – Julius e Ethel – tenham sido executados, eles eram figuras relativamente secundárias. Julius não havia vazado nenhum segredo atômico, apenas manteve a União Soviética a par dos desenvolvimentos. Ethel, embora fosse comunista, não tinha nada a ver com espionagem. A única pessoa que vazou “segredos” atômicos foi Klaus Fuchs, membro do Partido Comunista Alemão, que fugiu para o Reino Unido, trabalhou no projeto da bomba, primeiro no Reino Unido e, depois, no projeto Manhattan, como parte da equipe britânica. Ele fez importantes contribuições para o mecanismo de acionamento da bomba nuclear e as compartilhou com a União Soviética. A contribuição de Fuchs teria abreviado o desenvolvimento da bomba soviética em possivelmente um ano. Como várias nações demonstraram, uma vez que se sabe que uma bomba físsil é possível, torna-se fácil para os cientistas e tecnólogos replicá-la. Como foi feito por países tão pequenos quanto a Coreia do Norte.
A tragédia de Oppenheimer não foi o fato de ele ter sido vítima da era macartista e ter perdido suas credenciais de segurança. Einstein nunca teve credenciais de segurança, portanto, isso também não deve ter sido uma grande calamidade para ele. Foi a humilhação pública durante as audiências, quando ele contestou a retirada de sua credenciais de segurança, que o destruiu. Os físicos, os garotos de ouro da era atômica, finalmente viram seu verdadeiro lugar no mundo emergente do complexo industrial militar.
Einstein, Szilard, Rotblatt e outros haviam previsto esse mundo. Eles, ao contrário de Oppenheimer, seguiram o caminho da construção de um movimento contra as bombas nucleares. Os cientistas, depois de construírem a bomba, tinham agora que agir como guardiões da consciência do mundo, contra uma bomba que poderia destruir toda a humanidade. A bomba que ainda paira como uma espada de Dâmocles sobre nossas cabeças.
(*) Este artigo foi produzido em parceria entre a Newsclick e Globetrotter. Prabir Purkayastha é o editor fundador da Newsclick.in, uma plataforma de mídia digital. Ele também é um ativista da ciência e do movimento do software livre.
(*) Tradução de Pedro Marin
noticia por : UOL