MUNDO

Nobel de Jon Fosse pode parecer antiquado, mas é celebração inevitável

Não foi surpresa que o prêmio Nobel de Literatura deste ano tenha ido, nesta quinta, para o escritor norueguês Jon Fosse, de 64 anos, cuja obra já se encontra traduzida para mais de 40 línguas.

O autor ficou conhecido nos anos 1990 pelo trabalho no teatro e, com mais de 900 produções de suas peças, é hoje um dos dramaturgos mais encenados da Europa, chamado popularmente de “o novo Ibsen”. Isso não só pelo sucesso como autor dramático, mas porque sua dramaturgia é conhecida por diálogos desencontrados, às vezes elípticos.

Formado em literatura e filosofia pela Universidade de Bergen, Fosse reconhece sua inspiração em escritores como o conterrâneo Terjei Versaas e o irlandês Samuel Beckett, sem esquecer os filósofos Martin Heidegger e Ludwig Wittgenstein. Sua obra mergulha com cautela e sobriedade nos paradoxos da fé e da mística religiosa —ele mesmo empreendeu um extenso percurso de fé.

Seus pais são cristãos, seu avô era quaker e pacifista. Deixou a Igreja Luterana na adolescência, se afastou das instituições religiosas e, como estudante, lia mais Marx do que as escrituras —até reencontrar o movimento quaker em Bergen, aos 35 anos. Há 11 anos, depois de uma forte crise pessoal, o escritor se converteu ao catolicismo.

Desde sua estreia em 1983, aos 23 anos, com o romance “Raudt, Svart”, ou “vermelho, negro”, Fosse tem sido extraordinariamente prolífico. Além das peças de teatro, sua obra abarca romances, poemas, ensaios e livros infantis.

Em 2015, recebeu o Prêmio de Literatura do Conselho Nórdico, o mais importante da Escandinávia, com destaque para o estilo simples e denso da trilogia “Andvake”, ou vigília, “Olavs Draumar”, sonhos de Olav, e “Kveldsvaevd”, cansaço, nenhum deles ainda publicado no Brasil.

Da mesma época é o romance “É a Ales”, que a Companhia das Letras oportunamente acaba de lançar no mercado brasileiro. A Fósforo lança ainda neste mês o romance “Brancura”, para se somar ao já editado “Melancolia”, da Tordesilhas, e há mais quatro livros do autor planejados até 2025.

O manuseio único da linguagem por Fosse é caracterizado pela artesania enxuta, e suas obras tendem a ser compactas e densas, raramente ultrapassando as cem páginas. Com um estilo poético de prosa, a narrativa ganha uma simplicidade fortemente musical e rítmica que, segundo a crítica, “deixa o silêncio falar” no espaço do que não é dito.

Facilmente se reconhece a herança do alto modernismo, que dá forma a experiências interiores de tempo e lugar por meio de monólogos e fluxos de consciência.

É uma escrita que pode parecer inacessível e difícil —especialmente quando o autor elimina o uso de pontos finais, como no caso no seu projeto mais recente, o romance “Septologia”, terminado em 2019, que sairá daqui a dois anos pela Fósforo.

É sua maior obra até hoje e provavelmente o gatilho para a decisão do Nobel —um monumento em sete volumes, somando quase 1.300 páginas, sem um único ponto final.

O narrador do romance é Asle, um pintor viúvo que vive sozinho numa casa na Noruega, numa paisagem escura, úmida e fria. A história segue Asle nos encontros com o vizinho Asleik e com outro Asle, também pintor.

Este “Asle 2”, como é chamado por Fosse, também está sozinho com os pincéis, mas, enquanto Asle 1 está sóbrio e crente, Asle 2 está morrendo de tanto beber. Os dois se parecem de modo sinistro e começamos a suspeitar que as duas personagens são, em realidade, o mesmo Asle.

O motivo do duplo é comum na escrita de Fosse. Os nomes são recorrentes em todos os livros e os personagens se tornam familiares aos leitores fiéis. Da mesma maneira, as paisagens trazem a marca inconfundível do autor, assim como o ritmo, a repetição e as frases caleidoscópicas.

As sete partes que compõem a “Septologia” percorrem os sete dias antes do Natal. Na verdade, muito pouco acontece no tempo narrado; uma viagem de carro pode facilmente durar 70 páginas ou mais, porque os pensamentos de Asle 1 fluem livres enquanto está sentado no carro ou deitado na cama.

No entanto, em ações cotidianas inofensivas, o leitor avança no universo do narrador, e as conversas quase sem palavras adquirem gradualmente cor e significado, tanto pelo que é dito e, em particular, pelo que é mantido em silêncio.

A escolha de Fosse como Nobel será vista como opção antiquada e conservadora, uma última celebração do modernismo literário do século 20. Ainda assim, é o reconhecimento inevitável de sua contribuição para a literatura mundial.

noticia por : UOL

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