Lançado em 2002, “Cidade de Deus” se tornou um paradigma do cinema brasileiro. Goste-se ou não do filme dirigido por Fernando Meirelles, é preciso reconhecer que jamais na produção nacional uma favela tinha sido retratada com tamanha intensidade, exposta na profusão de fragmentos visuais e sonoros, além do roteiro engenhoso. “Um nocaute visual e uma metralhadora na edição”, escreveu na época a revista americana Variety.
O filme foi indicado a quatro Oscars, direção, roteiro adaptado, fotografia e edição, tem figurado em diversas listas internacionais dos cem melhores filmes do século 21 e deu uma projeção ao cinema brasileiro raras vezes vista. E agora vai virar série, sob a direção de Aly Muritiba.
Mas por que falar sobre “Cidade de Deus” em um texto sobre o recém-lançado “A Festa de Léo”? Porque uma condição inescapável se impõe neste caso: qualquer filme sobre uma favela carioca realizado desde então acaba dialogando com o longa de Meirelles –por aproximação (nos temas, na linguagem) ou por afastamento, como o filho que nega o pai.
Pode parecer, em um primeiro momento, que estamos diante de um discípulo que faz a sua reverência a “Cidade de Deus”. Afinal, “A Festa de Léo” é o primeiro longa produzido pelo núcleo de cinema do Nós do Morro, projeto cultural do Morro do Vidigal, no Rio, que contribuiu muito para a autenticidade do filme de 2002.
Além disso, vários atores que estiveram em “Cidade de Deus” aparecem neste novo filme, como Jonathan Haagensen, Babu Santana e Roberta Rodrigues.
Mas a produção dirigida por Luciana Bezerra e Gustavo Melo, ambos ligados há décadas ao Nós do Morro, se firma muito mais como um contraponto ao filme de Meirelles.
“A Festa de Léo” acompanha Rita, vivida por Cíntia Rosa, uma moradora do Morro do Vidigal que trabalha como vendedora na praia. A muito custo, ela consegue juntar economias para celebrar os 12 anos do filho, papel de Arthur Ferreira, mas a festa se torna improvável quando Rita descobre que foi roubada pelo marido, Dudu, encarnado por Haagensen, um pedreiro sob ameaça dos traficantes da favela.
Além da tentativa de botar a comemoração de pé outra vez, ela busca ajudar o pai do seu filho, embora sinta raiva dele.
Um dos pontos centrais do novelo de personagens de “Cidade de Deus” é a corrida masculina pelo poder, que vira-e-mexe acaba em violência. “A Festa de Léo” vai por outro caminho: é um filme sobre a persistência das mulheres, que evitam que o caldeirão social exploda de uma vez.
As tensões percorrem o drama de Bezerra e de Melo, mas são muito mais comedidas do que as vistas no filme de 2002. Não que os obstáculos sejam menores –a ausência do poder público é tão alarmante quanto antes. Mas as dificuldades surgem muito mais incorporadas ao cotidiano, são regra, não exceção.
Este tom moderado também se reflete na edição e na fotografia, que destoam da cartilha da celeridade de “Cidade de Deus”.
Assim, a trama avança, sem arroubos, por meio da determinação da personagem vivida com vigor por Cintia Rosa. Em “A Festa de Léo”, o Vidigal é dela.
noticia por : UOL