MUNDO

Melhor não contar

Tatiana Salem Levy é uma das maiores romancistas do país. E, sim, somos amigas, mas em minha defesa conto a vocês que seu livro de estreia, “A chave de casa” (Record, 2007), mexeu comigo por anos, me moldou como leitora e escritora, só que nessa época, nos primórdios do meu apaixonamento exponencial, eu ainda não conhecia Tatiana pessoalmente. Foi a primeira vez que ouvi o termo “autoficção”, e, através do trabalho dela, entendi qual era o nome daquilo que eu ficava tentando fazer até de madrugada no meu computador.

Sua maturidade e sua profundidade como escritora às vezes chegam a azucrinar (temos a mesma idade), assim como a maneira sensível e sagaz como ela roteiriza a história, prendendo nossa atenção a cada linha, entregando os acontecimentos de forma gradual e instigante, atrasando as respostas sem jamais cair na chatice dos autores que tergiversam demais ou enchem linguiça com seus academicismos. O leitor nunca se sente privado de uma cena importante ou abandonado em descrições irrelevantes sobre as cores outonais de um cair da tarde. Cada palavra importa, emociona, carrega as outras, antecipa tantas.

Poderia ficar aqui imersa em muitos parágrafos elogiosos a respeito da trajetória de Tatiana, mas vamos ao que interessa: “Melhor Não Contar”, que acaba de ser lançado pela Todavia, é um desses livros complexos e brilhantes que nos permitem infinitas analogias do tipo “tanto-quanto”. Tão visceral quanto milimetricamente calculado para ser uma grande obra; tão íntimo (mergulhamos em diários) quanto abrangente e facilmente reconhecível no histórico de tantas mulheres; tão bem escrito quanto insuportavelmente doloroso; tão escandalosamente feminino quanto leitura obrigatória para os homens.

É o despertar de uma sexualidade tão livre quanto reflexiva andando lado a lado com o que pode acontecer de mais sombrio e terrível a uma garota que tem seus seios despontando para o mundo. O abuso na infância, sobre o qual a autora escuta tantas vezes –de amigos, terapeutas e familiares– que “é melhor não contar”, retorna agora, aos 45 anos de idade da escritora, de forma sublime, sublimada e, sobretudo, sem perder sua capacidade violenta, vingativa e expurgadora.

É também a história de muitos abortos: uma infância sendo interrompida prematuramente, os bons sentimentos que temos por nossos cuidadores (diretos ou indiretos) sendo arrancados a fórceps do peito de uma pré-adolescente, e o fim precoce e absurdo de seus principais alicerces femininos, a mãe e a irmã mais velha. Até chegarmos ao aborto derradeiro, aquele que a faria expelir pedaços enquanto seu próprio corpo estava impossibilitado de estrutura. O aborto de um filho indesejado e de uma relação ansiada e perseguida.

Tatiana tenta, corajosa e incansavelmente, compreender como é possível existir uma mulher como sua mãe: livre, intelectual, engraçada, feminista, progressista, mas que a vida toda sofreu por amor e se sujeitou a relações machistas, insuficientes e precárias. Uma pessoa tão real quanto a escritora.

Salem Levy abre seu livro com uma das frases mais bonitas de Annie Ernaux: “Nada daquilo que se passa na infância tem nome”. Automaticamente penso em uma aula do psicanalista Christian Dunker, na qual ele explica sobre o conceito de real na obra de Jacques Lacan. Para Dunker, na literatura, real é tudo aquilo que está inalcançável, tudo aquilo de que tentamos dar conta ao escrever, mas fracassamos, chegando apenas até a borda, numa distância segura. O que nos mantém escrevendo (ou lendo) sem parar é o desejo obsessivo de chegar cada vez mais perto. De tocar no que talvez pudesse nos destruir (o trauma é sempre o segundo trauma). Tatiana Salem Levy está tão dentro do umbigo da sua dor que seria bem capaz de dar um nó até na cabeça de Lacan.


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noticia por : UOL

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