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'Me descobri como homem, como pai e como trans', diz empresário

Leonardo Medeiros tem uma filha de 20 anos, mas vai celebrar apenas seu quinto Dia dos Pais neste domingo (13). Ele se assumiu como homem trans em maio de 2018, quando passou a ser chamado de pai por sua filha, Camila, também trans.

Medeiros, 39, vive em Palhoça, na região metropolitana de Florianópolis, onde é dono de uma estamparia. Sua mãe Elisa (“empreendedora no ramo das cucas”) e sua filha (“batalhando para ser artista”) moram com ele.

Neste depoimento, ele lembra a violência sexual que sofreu aos 18 anos, fala da dificuldade para assimilar a decisão da filha pela transição de gênero e conta o que tem feito para se tornar um bom pai.

Eu me sentia diferente das meninas durante a infância, meu jeito era completamente masculino. Nasci em Bagé (RS), em 1984, então a minha adolescência aconteceu nos anos 1990. Sofria muito bullying porque não me comportava como a sociedade queria que uma menina se comportasse.

No final do ensino fundamental, eu percebia que gostava de meninas, mas não sabia a razão e ninguém falava sobre isso. Quando veio a adolescência, eu descobri uma turma de meninas que gostavam de meninas. Aí foi uma farra [risos].

Nessa época, eu tinha um padrasto bastante preconceituoso. Foram muitos conflitos, e ele acabou me botando para fora de casa. Eu tinha 16 anos. Sobre isso, quero frisar que minha relação com minha mãe —hoje viúva— é maravilhosa, a gente conseguiu se reconciliar.

Depois de sair de casa, minha vida ficou conturbada. Fui para a loucuragem, bebia muito, usava maconha. Quando eu tinha 18 anos, um cara, que já me perseguia nas baladas, me estuprou mais de uma vez. Como ele me ameaçava, eu tinha medo de denunciá-lo. Fiquei grávido.



Não queria tomar remédio para abortar, mas também não queria mostrar a gravidez, por isso, além de amarrar a barriga, eu usava um moletom para disfarçar —isso em pleno verão, fazia muito calor naqueles dias em Bagé

Nessa época, conhecia mulheres trans, mas não a transmasculinidade, não sabia que existia. Me sentia diferente, mas não sabia que eu era um homem trans. Eu me identificava como lésbica.

Não queria tomar remédio para abortar, mas também não queria mostrar a gravidez, por isso, além de amarrar a barriga, eu usava um moletom para disfarçar —isso em pleno verão, fazia muito calor naqueles dias em Bagé.

Em março de 2003, minha irmã me levou para o hospital, onde sofri violência obstétrica: a enfermeira me xingava porque eu não queria a criança —eu tinha decidido, junto com a minha família, deixá-la para adoção. Rejeitava tudo aquilo e hoje não me culpo por isso: tinha sido violentado e estava em pânico. A Camila não tem absolutamente nada a ver com essa dor toda, não é? Ah, obviamente o nome não era Camila [tinha um nome masculino àquela altura].

Faço aniversário em 12 de março, dia em que ela nasceu. Dois dias depois, quando já estava em casa, começou a jorrar leite do meu peito durante o banho. Fui dormir e sonhei com a Camila. Aí retornamos ao hospital e trouxemos ela de volta. Em casa, toda a minha família ajudou a cuidar da criança, ela foi muito bem recebida.

Eu tinha 19 anos e, ao assumir a maternidade, começou a minha fase adulta. Tive um período muito difícil durante a infância da Camila. Ela dizia “mãe, mãe”, e aquilo me feria. Nunca pedi que não se manifestasse daquele jeito, mas me incomodava e eu não entendia o motivo.

Tentei frequentar uma igreja porque achava que havia algo errado em mim. Sempre fui durão no jeito de andar, e o pastor da Universal me dizia: “Tu não pode andar assim, tem que ser mais feminina”.

Em 2010, tive depressão, sentia uma ansiedade muito forte e fiquei três meses de cama. Depois de uma conversa com um psiquiatra, decidi que nunca mais deixaria que alguém opinasse sobre minha sexualidade porque eu tentava namorar alguém e vinha o preconceito.

Além disso, resolvi deixar a minha cidade. Saí de Bagé e fui para Rio Grande, também no Rio Grande do Sul. É difícil tomar uma decisão quando você está com um alto grau de ansiedade, mas eu estava determinado a mudar minha vida. Antes trabalhava como design gráfico. Na nova cidade, fiz curso de encanador, fui contratado num estaleiro e comecei a prosperar.

Num dia em Rio Grande, em 2013, quando Camila tinha 10 anos, ela estava na sala de casa vendo um documentário sobre Jazz Jenning, uma menina trans americana. Ela me chamou e disse: “Não gosto das roupas que eu visto, não gosto de cortar meu cabelo como menino, sou assim [apontando para Jazz]”.

Eu não sabia o que fazer. “A gente mora num estado onde tu já sofre bullying sendo completamente afeminada, como seria isso?”, eu disse. Confesso que deveria ter sido um pouco mais forte, ter buscado mais conhecimento para acolhê-la. Por outro lado, eu não me culpo, não tinha informação. O fato é que Camila botou pra fora sua identidade.



Quando eu assumi minha transexualidade, aos 34 anos, a Camila deixou de me ver como mãe e passou a me chamar de ‘pai’ naturalmente. Eu me sentia como se carregasse pedras nas costas e, de repente, aquilo se soltou, foi uma das coisas mais maravilhosas que eu já ouvi

Anos depois, em maio de 2018, quando morávamos em Pelotas, cidade próxima de Rio Grande, uma amiga veio me visitar e ficamos horas conversando. Num determinado momento, ela me perguntou: “Não acha que tu é um homem?”. Aquilo mexeu muito comigo, fiquei fazendo perguntas e não deixei ela dormir.

No dia seguinte, falei com várias pessoas da cidade para saber como poderia iniciar o processo. Quando eu assumi minha transexualidade, aos 34 anos, a Camila deixou de me ver como mãe e passou a me chamar de “pai” naturalmente. Eu me sentia como se carregasse pedras nas costas e, de repente, aquilo se soltou, foi uma das coisas mais maravilhosas que eu já ouvi.

Mas havia uma complexidade, claro. Minha filha se assumiu como trans e, pouco tempo depois, eu me descobri como homem, como pai e como trans. Temos nossas dificuldades.

Em 2019, quando nós —eu, Camila e minha mãe, Elisa— já morávamos em Palhoça (SC), surgiu um outro tipo de conflito: o que é ser pai? Nunca tive uma referência de paternidade, meu pai não me assumiu. Foi nessa época que conheci o Tiago Koch, do canal Homem Paterno, e outros pais e pude entender melhor temas como a masculinidade.

As conversas nesses grupos de pais sempre me trouxeram lucidez. Até então, eu era um pouco machista. Hoje, rejeito essa premissa de que o homem deve estar sempre no comando e tenho me tornado um pai melhor.

Gosto de falar sobre minha vida, mas já fui criticado por isso, alguém disse que eu estava me vitimizando. É mesmo uma linha tênue, mas não é esse meu intuito. Lembrar minha história é um jeito de abordar assuntos como abuso sexual e transexualidade. Tem gente que me procura, pais e mães, por exemplo, e eu sinto que posso ajudá-los, é uma questão de consciência.

Depoimento a Naief Haddad

noticia por : UOL

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