MUNDO

Maneiras de perder os olhos no escuro

Era uma vez uma planária. Se você passou batido pela existência de tão intrigantes criaturas nas aulas de ciência, só posso lamentar. Afinal, não é todo dia que se encontra um vermezinho de corpo achatado capaz de regenerar praticamente qualquer órgão, por mais ferido que esteja, ou mesmo o corpo inteiro a partir de pedaços cortados. Um texto do começo do século 19 as descreve como “imortais diante do fio de uma faca”. Wolverine, morra de inveja.

Mas a espécie de planária de que fala a nossa história, sem deixar de lado seus superpoderes regenerativos, acabou indo parar nas entranhas da terra. Para ser mais exato, mudou-se de mala e cuia para a caverna conhecida como Buraco do Bicho, na região sul-mato-grossense do planalto de Bodoquena. O animalzinho é endêmico dessa caverna —ou seja, até onde sabemos, só existe ali.

Cavernas, como talvez o leitor imagine, são ambientes um bocado específicos. Por causa disso, aconteceu à Girardia multidiverticulata, como a espécie é designada oficialmente, algo que também vale para muitas outras espécies cavernícolas, como peixes, crustáceos e insetos: seus olhos começaram a sumir. Produzir estruturas oculares pode ter certo custo para o organismo e, nas trevas, elas tendem a ser menos úteis com o passar das gerações. Com isso, indivíduos de olhos menos eficazes talvez se saiam melhor diante do crivo da seleção natural.

O caso dela, porém, é menos extremo do que o de alguns outros habitantes de buracos rochosos. Experimentos feitos por uma equipe de pesquisadores do Departamento de Zoologia da USP, liderados por Luiza Saad e Federico Brown, mostraram que o bicho “enxerga”.

Ou, pelo menos, ainda mantém a capacidade de distinguir entre ambientes mais claros e mais escuros (e preferir esses últimos) que é típica de outras planárias. No caso da G. multidiverticulata, os olhos bastante simples vistos em outras espécies do grupo encolheram ainda mais, mas ainda estão presentes. E, curiosamente, em dois “morfotipos”, ou variantes. Em certos indivíduos, é possível enxergar com clareza os olhos rudimentares com microscópios comuns; em outros, eles são praticamente invisíveis (mas as células necessárias para detecção de luz ainda estão lá).

Em artigo recém-publicado na revista científica Nature Communications, a equipe da USP deu passos importantes para entender como, afinal de contas, uma espécie adentra o caminho da perda evolutiva de olhos. Pelo que se sabe de outros troglóbios (animais de cavernas), cada caso é um caso, e as planárias de Mato Grosso do Sul têm sua própria história.

Brown explica que a grande questão são as células-tronco da espécie. Ou seja, as células com capacidade de dar origem aos mais diversos tecidos do organismo, justamente as responsáveis pelos superpoderes das planárias.

Acontece que, feito alguém usando um aplicativo de trânsito, as células-tronco podem seguir “rotas” diferentes, virando um ou outro tipo de célula madura. Na espécie, menos células-tronco tomam a “rota” que dá origem às células oculares. Resultado: olhos rudimentares.

O detalhe, aliás, faz com que as planárias sejam um excelente modelo para estudar esses processos de desenvolvimento, tão cruciais para todos os seres vivos. E são um vislumbre da riqueza do que ainda se pode descobrir em ambientes tão frágeis e ameaçados quanto as cavernas.


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noticia por : UOL

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