MUNDO

Jordan Peterson mostrou que Brasil paralelo da direita virou oficial

[RESUMO] Ícone da direita, o psicólogo canadense Jordan Peterson já vendeu milhões de livros e arrasta multidões para vê-lo mundo afora. Em passagem por São Paulo na semana passada, atraiu políticos, milionários e celebridades da internet para ouvi-lo falar de Caim, Abel e sacrifício. Neste relato, autor descreve como a movimentada noite de palestra, embalada por ingressos salgados, Bach, uísque e apertos de mão a R$ 1.300, espelhou a nova cara da direita e o futuro político do Brasil.

“E se alguém jogasse uma bomba aqui? Com certeza, a direita brasileira seria destruída para sempre.” Sim, foi isso o que se ouviu na fila de espera, gigantesca, na frente do Espaço Unimed, em São Paulo, no último dia 18, enquanto cerca de 4.000 pessoas se preparavam para assistir à palestra do doutor Jordan Peterson, provavelmente o intelectual público mais pentelho do planeta.

“Pentelho? Como assim? Esses esquerdistas são foda. Ficam preocupados com essa história da Nubank, da Erika Hilton. Estamos pouco nos lixando com isso. Você não entende nada: Jordan salvou a minha vida”, poderia responder algum fã ali presente. Naquele lugar, a voz do povo era de fato a voz de Deus.

Salvar é uma palavra meio forte, mas é a exata sensação que se respirava quando finalmente os portões do local se abriram e os que estavam ali há mais de uma hora começaram a entrar, prontos para enfim receber, via inspiração divina, o que o bom doutor tinha a dizer.

Porque Jordan Peterson é, de fato, o bom doutor. E não só isso: ele é o bom doutor que, graças ao seu talento, se tornou milionário. Com seus livros (“Mapas do Significado”, “12 Regras para a Vida”, “Além da Ordem”) vendeu mais de 10 milhões de exemplares. O próximo, “We who Wrestle with God” (“Nós que Lutamos contra Deus”), está previsto para novembro.

Mas havia outra coisa que se respirava ali na entrada, antes de ir ao palco, onde o público, que pagou no mínimo R$ 600 por ingresso, se espalhava em diferentes setores, divididos por fitas de cores que iam do azul ao preto, passando pelo amarelo. O que se respirava ali, além do tesão por uma bomba que pudesse destruir todos os presentes, era “a nostalgia do gulag”.

A “nostalgia do gulag” é o seguinte: antes, durante e depois de Olavo de Carvalho, toda a direita brasileira —que simplesmente idolatra Jordan Peterson porque ele combate como poucos a política identitária, o comunismo e o ateísmo— sempre sonhou ir para uma Sibéria particular. No entanto, ela não tinha dinheiro para isso. Diferente da esquerda burguesa, a direita é pobre.

Então, para ter a Sibéria particular, a direita seguiu essa estratégia: acusou todo mundo de persegui-la. Universidades, imprensa, o Congresso, o Palácio do Planalto, mais recentemente o Supremo Tribunal Federal. Faça sua escolha. Com isso, conquistou um público que, humilhado por uma casta que não para de aumentar a morte e os impostos, resolveu se revoltar com protestos. Como consequência, Dilma Rousseff foi expelida do poder. Ainda assim, a direita continuava miserável, no bolso e na cabeça.

A solução foi apelar para as redes sociais e vender cursos. Mais do que isso: seus integrantes tornaram-se “influenciadores”, os infames “coaches de vida”. Foi quando o dinheiro passou a cair como maná. A esquerda alega que isso faz parte de uma conspiração internacional, mas também não hesitou em imitar sua competidora. Agora com a grana correndo a solta, a direita poderia ter o seu gulag. A diferença é que esse lugar era nada mais, nada menos que o próprio Brasil.

Com a pandemia, a direita brasileira entrou em sua fase mais recente: a de ser o contraponto à cultura oficial. Teve até um levante de velhinhos no famoso 8 de janeiro para marcar essa passagem. Mesmo com a morte de Olavo de Carvalho e a derrota de Jair Bolsonaro em 2022, ela não parou de crescer. Tornou-se, de fato, um país paralelo. Não à toa, a empresa que mais simboliza esse movimento —e é a encarnação suprema da “nostalgia do gulag”— se chama justamente Brasil Paralelo.

E também não por acaso, a empresa promoveu a visita de Jordan Peterson, junto com a produtora oficial do evento, o grupo gaúcho Fronteiras do Pensamento. O Brasil Paralelo, contudo, fez mais do que divulgar a vinda do bom doutor. Praticamente o sequestrou para seus próprios interesses.

O problema é que Jordan Peterson gostou disso, sofrendo da habitual síndrome de Estocolmo, ao tirar fotos festivas com gente do naipe de Eduardo Bolsonaro, em encontro intermediado por ninguém menos que o deputado federal Paulo Bilynskyj (PL-SP).

Se você, leitor, estivesse no Espaço Unimed no dia da palestra, iria respirar essa atmosfera nostálgica da direita. Mas, se estivesse nos camarotes, e não no gargarejo do palco, também iria respirar o cheiro salgado dos pastéis e das fritas (R$ 35 a porção), o odor doce dos fondues de chocolate, a fragrância dos vinhos que custavam, no mínimo, R$ 120, e ouviria o tilintar dos cubos de gelo em copos cujas doses milimétricas de uísque eram contabilizadas em R$ 45. Havia também outros tipos de comida, com direito a hambúrger e cerveja, para pessoas menos “descoladas”.

Entre uma música de Bach e outra que tocava antes da apresentação, só “descolados” circulavam ali. O elenco era vasto —e profundo: do pré-candidato à Prefeitura de São Paulo Pablo Marçal (PRTB) ao deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), passando por Leda e Duda Nagle (mãe, jornalista, e filho, ator), a deputada federal Bia Kicis (PL- DF), o ator Juliano Cazarré, Marco Antonio Costa (ex-Jovem Pan), André Marinho (atual Jovem Pan), Caio Coppola (comentarista na CNN Brasil), o cientista político e ex-deputado Heni Ozi Cukier, o vereador de São Paulo Fernando Holiday (PL), Adolfo Sachsida (ex-ministro de Bolsonaro), até a influencer Lara Brenner , Gabriel Kanner (herdeiro da Riachuelo) e sua esposa, Marthina Brandt (miss Brasil 2015), ali estava a nostalgia do gulag transmutada no radical chique de direita (muito obrigado, Tom Wolfe).

E não eram apenas as celebridades deste Brasil paralelo. O economista Joel Pinheiro da Fonseca, colunista da Folha, também compareceu; Maria Homem, psicanalista e professora da FAAP, que cobra R$ 1.700 por sessão avulsa de terapia (via Skype), fez graça com Schopenhauer quando a palestra finalmente terminou.

“Finalmente” é um termo exato porque o show —foi um show mesmo, pois Peterson se tornou uma espécie de Taylor Swift do intelecto— durou quase duas horas. Quem prestou atenção no conteúdo ficou com torcicolo. Afinal, o tema não era nada leve: sacrifício, Caim e Abel, Abraão e Isaac. Enfim, o velho e conhecido problema do mal, o tema que obceca —já podemos chamá-lo assim?— “Jordan”.

Portanto, “Jordan” começou com um sacrifício a ser imposto ao seu público tão querido: a abertura foi uma série de quatro músicas cantadas por um aluno seu, Victor Swift (nada a ver com Taylor, graças a Deus), o qual, com seu violão, simplesmente assassinou “Hallelujah”, de Leonard Cohen (é melhor nem comentar as outras três).

Antes de Jordan entrar, veio sua esposa, “Tammy” (que o chama de “Dr. Peterson”), aplaudida efusivamente —afinal de contas, não é qualquer pessoa que consegue escapar de um câncer nos rins.

E eis que ele surgiu. Sozinho no palco, vestindo um terno que parecia figurino do longa “Coringa” (2019), “Jordan” foi celebrado como o sacerdote que todos esperavam. O show foi todo dele: por quase uma hora e meia, houve um passeio pelo “significado político” da história bíblica de Caim e Abel, mas sobretudo pelo fato de que “Deus é o juiz do sacrifício”, sem que o bom doutor se importasse com a definição exata do termo “sacrifício” (a violência sagrada que molda o comportamento humano).

Na verdade, Abel não pratica rituais violentos para Deus, ao contrário do seu irmão homicida, e sim oferendas pacíficas (agradecemos esta distinção ao professor doutor Maurício Righi), e isto também foi tratado de forma displicente. Mas quem está preocupado com rigor nessas horas, não é mesmo?

No mundo do Brasil paralelo, o que importa é falar que “o maior descendente de Caim nos tempos atuais é o marxismo” —uma afirmação recebida pelo público com tamanha energia nos aplausos que era de se perguntar se o próximo sacrifício a ser feito pelo filho maldito de Adão e Eva não aconteceria na esquina ali ao lado.

É claro que aconteceria. Mas antes disso, o “gran finale”: apertar as mãos de Jordan e conversar com ele por alguns minutos. Havia, porém, uma condição (feita sem o conhecimento prévio da produção): pagar US$ 250 (cerca de R$ 1.380).

Quem se habilitou? Várias pessoas, a julgar por outra fila longuíssima formada, desta vez com os radicais chiques da vez, entre eles Nikolas Ferreira —que não conseguia andar, tamanho o assédio das fãs, e depois escreveu no seu Instagram, como legenda de sua foto com a estrela da noite: “Pick your damn sacrifice” (“escolha o seu maldito sacrifício”)— e Pablo Marçal, cuja forma de se aproximar do palestrante foi astuta: deu a impressão de que Jordan o conhecia há tempos; os dois se olharam como amigos, um apertou a mão do outro e até se abraçaram.

Este gesto foi a prova de que a palestra de Jordan Peterson simbolizou uma mudança no eixo de poder político do país. Os Bolsonaros não estavam mais no topo da cadeia alimentar da direita; Nikolas e Pablo eram, desta vez, a carne fresca.

E a imprensa, como sempre, desprezou o evento. Uma jornalista que estava ali chegou a relatá-lo como se fosse uma “reunião de reacionários”. Na realidade, era o futuro, o mesmo futuro caótico eleito em 2018, suspenso durante a pandemia e que agora, amadurecido e devidamente financiado, deixará de ser o Brasil paralelo e será o Brasil oficial por meio de uma única regra: o sacrifício em uma roupagem “descolada”, pleno da “nostalgia do gulag”, criando assim uma terceira etapa na carnificina da nossa violência sagrada —a síndrome de Caim.

Como reflexo disso, o bom doutor afirmou à produção oficial do evento que não daria entrevistas. E não deu, exceto para um veículo de imprensa: a Jovem Pan, representada pelo humorista André Marinho.

A razão dessa proeza é que Marinho é amigo de Robert F. Kennedy Jr., o candidato independente à Presidência dos EUA e aliado de Jordan em causas mais do que polêmicas (guerra contra a cultura woke, oposição a vacinas). É óbvio que um jornalista qualquer jamais teria chance de trocar uma palavra com o palestrante. Afinal, quem pode competir contra Camelot?

Ninguém, especialmente se levar em conta que, na saída do evento, por volta das 22h30, três amigos, que ainda digeriam os insights sobre Caim e Abel, foram em direção ao metrô mais próximo, a estação Barra Funda, repleta de pessoas deitadas no chão e moradores de rua pedindo dinheiro.

Enquanto esperavam um táxi, um vendedor ambulante, chamado Douglas, se aproximou e perguntou se eles queriam comprar um kit “dieta balanceada” —na verdade, uma modesta caixa de brigadeiros caseiros (R$ 10). Desconfiados, recusaram a oferta. Mas Douglas foi insistente e soltou outra questão: “Quem estava ali dando show?”. Não foi show, foi uma palestra, responderam. “De quem?” Jordan Peterson. “Jordan Peterson? Puxa, tão brincando? Sou fã dele! Li todos os livros.”

O vendedor sacou o celular gasto pelo uso e mostrou, na tela, que de fato tinha a obra completa do bom doutor. “Eu aplico as 12 regras da vida dele todos os dias!” Sorridente, Douglas se despediu. Os três amigos estavam completamente surpresos. Era o Brasil verdadeiro a se sacrificar pelo Brasil paralelo (e, quiçá, oficial) que pagou uma fortuna para apertar a mão de um mero homem.

noticia por : UOL

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