MUNDO

Historiador destrincha por que países têm zonas com regras paralelas de impostos

Quantos países existem no mundo hoje, e quantos haverá em 2150? É com essa pergunta provocadora que começa o novo livro do historiador canadense Quinn Slobodian, “Capitalismo Destrutivo – Os Radicais do Mercado e a Ameaça de um Mundo sem Democracia” (Objetiva).

O leitor é instado a responder o número atual sem consultar a internet. O autor retruca que temos cerca de 200 países, mas ressalva que esse número pode ser diferente no futuro.

É que os países, como existem hoje, já abrigam territórios e jurisdições peculiares, paraísos fiscais, zonas francas, distritos isentos de tarifas, impostos alfandegários ou taxas aduaneiras.

Recém-lançado no Brasil, o livro define as zonas como enclaves criados dentro dos limites de uma nação, sem formas comuns de regulamentação, em que os poderes de tributação usuais costumam ser suspensos, dando aos investidores a chance de ditar suas próprias regras.

Podem ser locais de produção de baixa remuneração ou, em outra versão, paraísos fiscais —destinos que abrigam lucros corporativos com impostos baixos ou nulos, o que custa, só aos EUA, US$ 70 bilhões em receitas tributárias por ano, segundo o autor.

Slobodian cita casos de ilhas do Caribe onde há mais empresas registradas do que pessoas residentes. O mundo tem, hoje, mais de 5.400 zonas, de acordo com o levantamento dele, sendo que a maior parte está na América Latina, na África e na Ásia —aproximadamente metade delas fica na China.

Algumas se assemelham a pequenos galpões instalados no ciclo logístico do mercado global para armazenar ou montar determinados produtos evitando tarifas. Também podem ser megaprojetos urbanos futuristas, como a cidade inteligente de Songdo, na Coreia do Sul, Neom, na Arábia Saudita, ou Fujisawa, no Japão.

Embora menos de 10% das zonas estejam localizadas na América do Norte e na Europa, segundo Slobodian, é no Ocidente que estão seus maiores entusiastas, que as defendem como arranjos políticos alternativos em pequena escala e sugerem que a utopia do livre mercado pode ser alcançada por meio de atos de fragmentação, criando territórios livres dentro das nações.

O autor descreve os arranjos como aberturas de buracos no território do Estado, em que se criam zonas de exceção com leis diferentes e em muitos casos sem supervisão democrática, podendo prejudicar as bases do país ao seu redor.

“Defensores dessa perfuração se apresentam como guerrilheiros de direita, reivindicando —e decompondo— o Estado-nação. Tão logo o capital fuja para novas zonas não regulamentadas e com impostos baixos, reza a teoria, as economias que se recusarem a se sujeitar à prática serão forçadas a emular essas anomalias”, diz o autor na introdução.

“Este livro conta a história do que chamo de capitalismo destrutivo. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma descrição do mundo que tomou forma nos últimos 40 anos pelos esforços descoordenados de atores privados ávidos por lucro e segurança econômica, o que foi viabilizado por governos solícitos e também da história de uma ideologia deliberada”, completa.

No livro, o canadense reconta a origem de alguns dos destinos mais emblemáticos de sua pesquisa, começando por Hong Kong. Entre os detalhes históricos que dão ritmo à leitura, o autor relembra o papel que teve o neoliberal Milton Friedman ao disseminar, por meio da popular série de televisão “Free to Choose”, no fim dos anos 1970, o modelo praticado na então colônia britânica.

Em entrevista à Folha, Slobodian diz que Hong Kong foi uma escolha óbvia no livro. Além de a China ser mais expressiva em número de zonas econômicas especiais, ele afirma que era preciso registrar a forma como as cidades costeiras do sul do país, especialmente Shenzhen, seguiram o modelo de Hong Kong para se tornarem pequenos espaços com mercados de trabalho e direitos sociais fluidos.

“Era extremamente estranho e atípico no final da década de 1970 ter um lugar que ainda era uma colônia, que era tão pequeno e ainda assim economicamente importante, que não estava se movendo em direção à democracia de forma alguma. Isso era uma espécie de anacronismo, que alguém como Friedman via, paradoxalmente, como um tipo de espaço futurista que poderia ser replicado em outros lugares”, diz o autor.

Ao longo do texto, ele também aborda casos como Liechtenstein, Somália e Singapura. Segundo Slobodian, “Capitalismo Destrutivo” pode ser visto como uma sequência de sua obra anterior, “Globalistas – O Fim do Império e o Nascimento do Neoliberalismo”, lançado em 2018.

“É uma espécie de sequência porque o anterior era uma tentativa de sair do modelo binário de que ou há soberania nacional ou há capitalismo global. Como eu mostro no livro, o capitalismo funciona através das nações. E também funciona através desses enclaves territoriais menores e jurisdições dentro das nações que podem ser frequentemente usados pelos populistas nacionais para seus propósitos”, afirma.

“Eu queria mostrar como grande parte da retórica do nacionalismo que estava sendo usada no retrocesso desde 2016 estava se baseando em algumas das ferramentas mais antiquadas da integração capitalista global. Então, [Giorgia] Meloni ou [Matteo] Salvini, [Viktor] Orbán ou Boris Johnson, todos abraçam a zonificação e as zonas econômicas especiais, mesmo quando falam uma linguagem de proteção nacional e soberania. Foi uma tentativa de estourar a bolha da retórica populista de direita”, diz ele.

noticia por : UOL

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