O desabamento do teto da Igreja de São Francisco, no Centro Histórico de Salvador, intensificou o debate sobre a prevenção de desastres em áreas históricas, incluindo o impacto das emissões sonoras causadas pelo tráfego de veículos e por apresentações musicais.
O Brasil não tem uma legislação específica que trata do impacto do som nas edificações, o que acarreta uma ausência parâmetros para o poder público regular os limites das emissões sonoras.
Para suprir esta lacuna, especialistas em acústica de cinco estados se reúnem semanalmente desde fevereiro para criar um termo de referência sobre as emissões sonoras e o impacto das vibrações em áreas e edificações tombadas.
O objetivo é que o documento sirva de base para criar uma legislação sobre o tema, com a definição de limites de vibrações, tempo de exposição ao som e sugestões de medidas para minimizar os impactos.
O impacto do tráfego de veículos e realização de festas e shows musicais próximo de imóveis tombados estão entre as principais preocupações dos especialistas.
“É surreal o que se coloca de emissão de sonora aqui. É preciso passar por um longo processo de conscientização e de percepção de que a gente não pode pensar só na gente, é preciso construir uma consciência coletiva”, afirma a arquiteta Débora Barretto, idealizadora do grupo.
O comitê tem feito reuniões desde fevereiro e deve finalizar o documento nas próximas semanas. Também fazem parte do grupo os arquitetos Maria Lygia Alves de Niemeyer, Nayara Gevú, Pedro Resende e Bianca Araújo, e os grupo os engenheiros Krisdany Cavalcante e Dinara Paixão.
A elaboração do termo de referência tem o apoio da Prefeitura de Salvador. Mas a ideia é que o documento também sirva de baliza para legislações de outras cidades com edificações históricas.
Na capital baiana, o debate sobre emissões sonoras ganhou corpo nos últimos anos, sobretudo no Centro Histórico, reconhecido como Patrimônio Mundial desde 1985 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
No Pelourinho, o tráfego de veículos já é limitado em parte as ruas no São João.
Os grandes eventos são vistos com reserva por parte dos comerciantes e entidades com sede Pelourinho. Além das emissões sonoras, destacam também o impacto da montagem e desmontagem das estruturas.
“Existe uma vida cultural, comercial, as pessoas estão aqui todos os dias. Se você enxerga o Centro Histórico apenas como um cenário para shows, você mata o entorno que é o que sustenta”, afirma Ângela Fraga, diretora-executiva da Fundação Casa de Jorge Amado.
A entidade já enfrentou episódios de objetos que caíram de prateleiras devido ao som alto e funcionários barrados de entrar no prédio por conta da montagem de palcos. Sua sede fica no Largo do Pelourinho, onde acontecem shows no Carnaval.
No Santo Antônio, bairro que se tornou um reduto boêmio da cidade, moradores criticam o excesso de festas, sobretudo no Carnaval. No início do ano, o Ministério Público do Estado recomendou a proibição do tráfego de trios elétricos, além da limitação do número de blocos.
As emissões sonoras são fiscalizadas pela prefeitura com base na Lei do Silêncio, que impõe limites de volume. Mas não existe um monitoramento do possível impacto do som —que se propaga pelo ar e pelas superfícies sólidas— nas edificações, incluindo bens tombados.
“De alguma forma essa parede vai reagir ao som. Ou ela tem estrutura suficiente para se segurar, ou ela vai vibrar junto, o que acontece principalmente em edificações mais antigas”, explica Débora Barretto. Essas vibrações podem causar fissuras, rachaduras e, no longo prazo, até desabamentos.
Em edificações antigas, os efeitos tendem a ser potencializados. Isso porque, em geral, as ruas são estreitas e prédios não possuem recuos frontais e laterais, gerando o chamado de efeito de cânion —o som encontra mais barreiras para escapar.
As edificações mais antigas também estão menos preparadas para absorver o som e possuem ornamentos mais sensíveis às vibrações. Apesar de terem paredes mais largas, são construções feitas com materiais menos densos.
No Brasil, estudos realizados sobre o tema buscaram referências na literatura internacional para definir parâmetros.
A arquiteta Nayara Gevú, doutora em arquitetura e urbanismo pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), estudou a influência do tráfego de veículos sobre edificações históricas no centro do Rio em sua tese de doutorado apresentada em 2022.
Ela recorreu à legislação vigente na Alemanha sobre o tema e, com base neste os parâmetros, identificou que o nível de vibração acima do limite estabelecido em praticamente todas as edificações avaliadas.
“Quando essas edificações foram construídas, havia outro tipo de transportes. Eram bondes, carroças, pedestres. Hoje a gente tem um fluxo viário intenso, são cerca de 25 mil veículos por dia nesse corredor histórico. É um impacto muito grande nessas edificações”, afirma.
Outro estudo foi realizado em 2020 por Juliana Evaristo dos Santos, na pós-graduação em arquitetura e urbanismo da UFBA (Universidade Federal da Bahia), que avaliou no mestrado nível de vibrações em edificações tradicionais do Centro Histórico de Salvador.
A pesquisa identificou vibrações acima do limite, usando parâmetros da norma alemã, nos prédios da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e a Faculdade de Medicina da Bahia durante o Carnaval no Pelourinho. Nas festas de São João, foram identificadas vibrações acima limite da norma internacional em um imóvel no Largo do Cruzeiro de São Francisco.
noticia por : UOL