Desde leituras públicas de Simone de Beauvoir pela veterana Fernanda Montenegro a homenagens a textos clássicos, como “Vestido de Noiva“, de Nelson Rodrigues, o cenário de teatro de São Paulo teve montagens notáveis ao longo do ano.
Com isso em mente, a Folha convidou quatro especialistas em teatro para indicar, cada um, as cinco melhores montagens inéditas que viram este ano.
As 20 peças indicadas –monólogos, espetáculos baseados em fatos ou pessoas reais, e muito mais– compõem a seleção das melhores produções de 2024.
Confira a lista completa abaixo, em ordem alfabética:
Andre Marcondes
Editor-assistente de impresso e autor do blog Mise-en-scène
Cão Vadio
Direção: Ana Rosa Tezza. (Teatro Estúdio)
A direção e dramaturgia de Ana Rosa Tezza evoca influências literárias de autores como García Márquez, Borges e Vargas Llosa, mesclando elementos visuais inspirados no pintor argentino Antonio Berni e na imprensa latino-americana. A peça questiona a condição humana, revelando o estresse e as belezas que surgem em um mundo marcado pela desigualdade e pelo exílio emocional e físico.
Prima Facie
Direção: Yara de Novaes. (Teatro Vivo)
O monólogo destaca a transformação emocional da personagem, explorando questões de gênero, poder e justiça. A interpretação de Débora Falabella tem sido amplamente elogiada por sua clareza e intensidade, e o cenário minimalista de André Cortez amplifica a tensão ao representar a desconstrução do sistema patriarcal. A peça também fomenta reflexões sobre a misoginia e a necessidade de uma Justiça mais inclusiva e empática.
Primeiro Hamlet
Direção: Gabriel Villela. (Sesc Vila Mariana)
Protagonizada por Chico Carvalho, a montagem traz uma abordagem que realça a manipulação moral e os dilemas de poder na corte dinamarquesa, com ressonâncias contemporâneas. A trilha sonora, executada ao vivo e cantada em latim, contribui para a atmosfera imersiva da peça. O espetáculo mantém a relevância do texto shakespeariano, explorando questões de ambição, vingança e corrupção política que ecoam nos dias atuais.
Sra. Klein
Direção: Victor Garcia Peralta. (Sesc 24 de Maio)
A atuação das protagonistas é o ponto alto da peça, que equilibra humor sarcástico e momentos de alta carga emocional. Além disso, dialoga intensamente com conceitos da psicanálise, mas permanece acessível a todos os públicos ao focar nas nuances da dinâmica mãe-filha e nos desafios universais de lidar com perdas e transtornos pessoais.
O Vazio na Mala
Direção: Kiko Marques. (Centro Cultural Fiesp – Teatro do Sesi)
Baseado em fatos reais, o espetáculo teatral dirigido por Kiko Marques explora os impactos emocionais causados pelo Holocausto. Com um elenco forte e elementos cenográficos e sonoros cuidadosamente trabalhados, “O Vazio na Mala” é uma jornada comovente que convida o público a refletir sobre memória, resiliência e a força dos laços familiares.
Cristina Camargo
Repórter da Folha
Fernanda Montenegro lê Simone de Beauvoir
Direção: Fernanda Montenegro. (Teatro Raul Cortez-Sesc 14 Bis)
Aos 94 anos, a maior atriz brasileira não precisou de uma grande estrutura para causar comoção e disputa de ingressos: uma cadeira, uma mesa com um copo de água e as páginas com o compilado de pensamentos de Simone de Beauvoir. O espetáculo pode ser lido como uma celebração da vida dessas duas mulheres sábias, densas, talentosas e amorosas. Foi também uma ode ao teatro, em um ano de salas cheias e público ávido pela proximidade com os artistas. Levada para uma apresentação no Parque Ibirapuera, a peça atraiu 15 mil pessoas.
Dois de Nós
Direção: José Possi Neto. (Teatro Tuca)
Juntos no palco pela primeira vez após contracenarem durante décadas em novelas, Antonio Fagundes e Christiane Torloni provocaram reflexões sobre a vida conjugal diante das transformações sociais que mudam as relações entre homens e mulheres. A dramaturgia de Gustavo Pinheiro aborda o machismo de forma crítica, mas sem ser panfletária. Afastados da TV, os atores veteranos continuam em forma no teatro e usam a comédia para fazer o público pensar e discutir o tema no final das encenações, em bate-papos com a presença do elenco.
Édipo Rec
Direção: Luiz Fernando Marques. (Sesc Pompeia)
Em clima festivo, o grupo Magiluth, de Pernambuco, atualizou a jornada do herói grego em um espetáculo com pista de dança, karaokê, beijaço e público próximo aos artistas, no palco, em grande parte da encenação. A quebra total da quarta parede deixou o texto de Sófocles mais palatável para os dias atuais. A montagem contemporânea de um grande clássico surpreendeu e encantou o público ávido por novidades e um pouco cansado de releituras sem grandes inovações.
Vestido de Noiva
Direção: Helena Ignez. (Teatro Anchieta-Sesc Consolação)
Lucélia Santos e Helena Ignez se uniram para montar a peça revolucionária de Nelson Rodrigues –e deu muito certo. O texto chegou na íntegra ao palco do Teatro Anchieta, porém, as artistas fizeram retoques na adaptação para deixar a montagem mais brasileira do que nunca, distanciando a encenação de influências europeias vistas em outros projetos. A classe média foi desnudada sem pudores, e com certa graça, sob a direção da diretora libertária.
Dora
Direção: Sara Antunes (Sesc Ipiranga e Tusp Butantã)
A história de Maria Auxiliadora Lara Barcelos foi contada pela atriz e diretora Sara Antunes a partir da relação da guerrilheira com a mãe, principalmente por meio da troca de cartas. Com muita sensibilidade, o drama de Dora, como a militante política era conhecida na resistência à ditadura militar, se mistura às descobertas, alegrias e tristezas da atriz, que mergulhou em pesquisas sobre a personagem da vida real. Recursos cênicos como projeções possibilitaram um comovente diálogo entre o passado e o presente.
Gustavo Zeitel
Repórter da Folha
Fantasmagoria 4
Direção: Felipe Hirsch (Sesc Consolação)
Dirigida por Felipe Hirsch, a colagem realizada a partir de textos escritos por Caetano Galindo, Guilherme Gontijo Flores e célebres artistas, como John Cage e Paulo Leminski, tematizou, mais do que a inutilidade, o dilema da autenticidade na arte contemporânea. A peça mostrou que a falência das vanguardas coincidiu com o esvaziamento de sentido da experiência humana no século 21.
Com o esgotamento das formas, a repetição tornou-se um valor positivo, tal como abordado na sequência de cenas que constituíram essa última montagem do coletivo Ultralíricos, que estreou durante a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp. Destacam-se a encenação de um filme policial e a repetição perturbadora de uma frase, pronunciada por um ator solitário. No vazio, restaram nonsense, ironia e uma plateia incomodada, que deixava a sala no meio do espetáculo. O cenário caixa-preta era de total despojamento, mas não menos estetizado. Hirsch deve muito à ousadia de Gerald Thomas. De todo modo, é bom ver uma peça teatral que não busca o aplauso.
Lady Tempestade
Direção: Yara de Novaes (Teatro Poeira)
Andrea Beltrão não precisa sair do Poeira, teatro que mantém em parceria com Marieta Severo, ou mesmo do Rio de Janeiro, para ser a melhor atriz do país. Em janeiro, “Lady Tempestade“, sua nova peça, foi anunciada com despretensão. Pouco a pouco, tornou-se o fato cultural do verão carioca, com o público disputando cada ingresso. Não seria possível evitar o retorno da peça ao mesmo endereço, um ano depois da estreia. Dirigida por Yara de Novaes, Beltrão encarna a advogada Mércia Albuquerque, que defendeu presos políticos da ditadura militar.
A dramaturgia de Silvia Gomez tem como alicerce os diários da defensora, por onde escava passagens sombrias da história brasileira. É um modo simples e envolvente de estruturar o monólogo. Em cena, a atriz só está acompanhada por seu filho, que faz as vezes de sonoplasta. É impossível não pensar que “Lady Tempestade” antecipou a febre ao redor do filme “Ainda Estou Aqui“, dirigido por Walter Salles. Ainda é preciso investigar e publicizar as violações cometidas durante o regime militar, porque ali se desenhou o ímpeto autoritário que existe em nós e se esboça agora. Há dois anos, o capitão e ex-presidente Jair Bolsonaro, do PL, planejou dar um golpe contra a democracia brasileira, relatou a Polícia Federal. No Brasil da música sertaneja, o engajamento de Beltrão chega no momento certo e ainda comporta sua interpretação precisa, advinda de uma mente inquieta. Beltrão é uma atriz exata.
Tio Vânia
Direção: Eduardo Tolentino (Sesc Santana)
A existência do Grupo Tapa, na cena teatral brasileira, é necessária. Liderada pelo diretor Eduardo Tolentino, a companhia, que trocou o Rio de Janeiro por São Paulo, garante a encenação de textos cânonicos. “Tio Vânia”, do russo Anton Tchekhov, que ganhou os palcos neste ano, tornou-se uma aula de teatro. O Tapa traz os urdimentos do teatro, raros nos dias atuais: um elenco numeroso, que, sabendo projetar a voz, dispensa o microfone por mais de uma hora. Não se tenta tornar um texto do século 19 em uma obra contemporânea.
Respeita-se o autor, inclusive na ambientação, com a roupa de época e o cenário figurativo. E poucos sabem dirigir atores como Tolentino, cujo rigor acaba por não se encerrar em dogmas. Também é verdade que o texto ajuda. “Tio Vânia” reúne tudo o que a boa literatura russa nos oferece, isto é, uma reflexão sobre o ser humano, que pende, alicerçada no saber filosófico, entre a tragédia e a comédia. Já se espera, com ansiedade, a próxima peça do Tapa.
Cuckoo
Direção: Jaha Koo (Sesi-SP)
Ao ser anunciada, a programação da Mostra Internacional de São Paulo, a MITsp, indicava o sul-coreano Jaha Koo como o artista a ser observado de perto pelo público. Entre as peças encenadas por aqui, “Cuckoo” tinha uma premissa absurda e atraente: o artista contracenaria com panelas de arroz, típicas do país asiático. A plateia descobriria que os utensílios falariam e exprimiriam suas emoções por um sistema de programação e seriam utilizados como metonímia da história recente da Coreia do Sul. Aprenderíamos, então, que uma crise econômica, há duas décadas, causou uma onda de suicídios no país. O texto revelava-se, por fim, inteligente, em uma experiência enriquecedora.
Hedda Gabler
Direção: Clara Carvalho (Masp)
Discípulos do Tapa, os integrantes do Círculo de Atores têm protagonizado boas montagens, como no caso do texto do norueguês Henrik Ibsen. A direção de Clara Carvalho, que também traduziu a obra, não retira esse drama oitocentista de sua época, mas sugere traços da violência masculina. O cenário, se considerada a estrutura do Teatro do Masp, pareceu uma boa solução, com a presença de uma casa, vazada, que deixava à mostra elementos exteriores às cenas. Ainda que o elenco tenha se mostrado irregular, o canto de Nábia Vilella fez-se soberano e imprimiu suspense ao drama da personagem-título, interpretada por Karen Coelho, que enfrenta, enfastiada, o casamento, e parece destinada à infelicidade.
Maria Eugênia de Menezes
Crítica de teatro
Prima Facie
Direção: Yara de Novaes (Teatro Vivo)
São sempre pródigos os encontros entre Débora Falabella e a diretora Yara de Novas. Mas Prima Facie é, sem dúvida, o ponto máximo dessa longa e profícua parceria. Apoiada no bem arquitetado texto da australiana Suzie Miller e bravamente conduzida por Novaes, Débora Falabella entrega um tour de force admirável. O espetáculo do ano.
Cabaré Coragem
Direção: Júlio Maciel (Sesc Belenzinho)
Sem contar com um diretor fixo em seu corpo, o veterano grupo mineiro Galpão segue se reinventando e descobrindo. Na montagem em formato de cabaré de variedades, seus integrantes cantam, dançam e evocam textos de Brecht. Em um país onde as instituições culturais são tão frágeis e a lógica dos editais pauta a produção das artes cênicas, é um privilégio reencontrar esses nossos velhos conhecidos em tão boa forma.
Fantasmagoria 4
Direção: Felipe Hirsch (Sesc Consolação)
Na peça que anunciou o fim da companhia Ultralíricos, Felipe Hirsch reuniu o melhor dos elencos do ano para encenar o vazio. Palavras brotam aos borbotões, mas não precisam dar conta de nenhuma bandeira, defender nenhuma temática, contar nenhuma história. São instantes de lirismo para quem tiver olhos pra ver. São homens e mulheres que trazem em si todos os sonhos do mundo.
Um Jardim para Tchékhov
Direção: Georgette Fadel (CCBB)
Desejos frustrados, ambições artísticas que nunca se realizam, o egoísmo que atravessa as relações humanas. O dramaturgo Pedro Brício revisita com insuspeito frescor e graça os grandes temas da obra do russo Anton Tchekhov.
Dora
Direção: Sara Antunes (Sesc Ipiranga e Tusp Butantã)
Para compor a obra, Sara Antunes debruçou-se por anos sobre a história da guerrilheira Maria Auxiliadora Barcelos, entrevistou seus familiares, reviu documentos e cartas e trouxe o retrato de uma nebulosa personagem de nossa história. Os ecos do trabalho com o noticiário recente garantem à Dora uma cama da extra de interesse. Apesar do lastro de concretude e da seriedade de sua investigação, Sara também encontra espaço para se auto investigar. Vê-la em cena é também uma oportunidade de relembrar seu brilhante percurso como artista.
noticia por : UOL