MUNDO

Dormirão em paz os privilegiados?

Gilberto Gil, em canção gravada por Chico Buarque, nos diz que é sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar. Sem a pretensão de incorrer no erro básico de explicar poesia, sobretudo uma do mestre Gil, esse verso ressoa naquilo que os estudos críticos de branquitude buscam anunciar. Não existe ausência absoluta, sem que haja presença dominante. Se há falta, há estada; se há desfavorecidos, sempre haverá os privilegiados.

É nessa toada que, juntos, dirigimos o Observatório da Branquitude. Ao entendermos a branquitude como o lugar de privilégios raciais, que se construiu historicamente como o mais elevado da hierarquia racial, com o poder de classificar o outro, atribuir racialidade e subjetividade estigmatizante a quem considera não branco, nos filiamos às correntes que compreendem o racismo como estruturante das desigualdades simbólicas e materiais que promovem um corpo de privilegiados que não renunciará a seu lugar no topo.

Portanto, nascemos para oferecer ao Brasil um novo repertório de análises de suas questões mais profundas. Centralizar a branquitude como objeto de escrutínio significa não apenas delimitar um campo de ação, mas fazer uma contundente declaração de que o poder branco econômico, jurídico, político e cultural, não poderá mais dormir em paz. Estará em constante observação e questionamento.

No entanto, mais do que anunciar o privilégio branco de um país insistentemente desigual, é necessário desvelar mecanismos, as minúcias, os senões, as transfigurações, compreender complexidades e vicissitudes presentes nessas permanências de longa duração nos espaços de poder. Como exemplo, no último novembro, revelamos que os homens brancos de São Paulo receberam mais apoio financeiro do Estado para realização de pesquisa sobre meio ambiente do que todos os pesquisadores da região norte, onde está localizada a Amazônia brasileira e é a região com maior concentração de pesquisadoras e pesquisadores negros nessa temática.

A ligação intrínseca entre o racismo e as injustiças climáticas vem sendo evidenciada de forma contundente pela sociedade civil brasileira. A forte participação nas últimas COPs, sobretudo na COP28 realizada no mês passado em Dubai, a profusão de relatórios técnicos, estudos e ensaios que demonstram de forma inequívoca para a pertinência de articulações entre marcadores da diferença, tais como renda, região, gênero e especialmente raça no repertório de interpretações sobre justiça climática, é abundante, mas ainda assim é no sudeste, nas mãos dos homens brancos que está a maior parte dos recursos.

É esse tipo de incongruência que queremos revelar e exigir transformações radicais. Temos insistido na tecla de que a consciência das desigualdades, seguida de inação que mantém e sustenta privilégios, é ato contínuo de uma agenda supremacista branca que perpetua a quem considera outro – no caso brasileiro, a população negra e indígena – nos piores índices socioeconômicos. Assim, condena a maioria da população a um destino funesto.

Quando desvelamos os grupos anticotas, através das análises de discursos públicos, projetos de lei nas casas legislativas federais e nos editoriais de imprensa, buscávamos justamente compreender como se articulavam aqueles que não suportavam ver seus espaços de privilégio, como os cursos de maior prestígio nas universidades, passarem por um exitoso processo de desrracialização. Por não se verem como portadores de raça, e sim como sujeitos universais, nunca entenderam que um espaço com 90% de pessoas pertencentes a um mesmo grupo racial, é um lugar, em essência, racializado.

A agenda supremacista não vai ceder gentilmente seus espaços seculares. Da nossa perspectiva, um novo amanhecer depende do rompimento com os pactos narcísicos da branquitude e da não renovação com o velho poder que busca se manter no sol. Apostamos na promoção de uma plataforma política que sonhe – e se empenhe – na formulação de um Estado que transgrida o estado de coisas, tendo no horizonte uma utopia de nação inclusiva.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço “Políticas e Justiça” da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Manuela Thamani e Thales Vieira foi “Copo Vazio”, de Gilberto Gil e Chico Buarque.


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noticia por : UOL

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